O título do post é, confesso, meio picareta: não estou falando do legendário luchador mexicano (embora tenha certeza de que ele está conosco em espírito), mas do titular do fantástico site www.1000misspenthours.com. Se você ainda não conhece o site, sugiro que o visite - trata-se de prova cabal de como um "leigo" consegue versar, a título de hobby, sobre cinema de forma a deixar no chinelo a esmagadora maioria dos pretensos "críticos profissionais de cinema". Antes de visitá-lo, contudo, sugiro que termine de ler este post.
Quando vi Django Unchained, no início do ano, tive uma surpresa monstruosamente aprazível: apesar de já ter lido (e adorado) o roteiro, o resultado final foi ainda melhor. A obra do Queixada Tarantino é, sem sombra de dúvida, o mais formidável filme norte-americano de 2012, a melhor obra estadunidense que aborda a escravidão nas Américas e, em minha opinião, a melhor obra do diretor. Se eu pudesse mudar qualquer detalhe no filme, não mudaria nada. O entusiasmo, naturalmente, me deixou inclinado a postar sobre o filme, mas, pouco depois de vê-lo, li a resenha sobre o filme em A 1000 Misspent Hours e me encontrei num dilema: por um lado, concordo plenamente com todas as considerações de El Santo sobre o filme; por outro... na verdade, acho que é pelo mesmo lado... concordo tanto que cheguei a conclusão de que, se postasse sobre o filme, acabaria incorrendo em plágio, tamanha a semelhança entre minhas observações e as de El Santo sobre o filme. Tudo que eu tinha a acrescentar já havia sido mencionado (com mais eloquência que eu) pelo post do Ron Perry (de quem só discordo a respeito dos últimos 25 minutos do filme). Cheguei à conclusão de que a melhor saída seria simplesmente postar um link para divulgar a resenha que tanto admirei. Ocorre, entretanto, que boa parte de meu imenso público (minha esposa) não fala nem lê inglês, o que me levou a, desafiando a preguiça, tomar mais uma atitude: consultar Scott "El Santo" Ashlin , titular dos direitos autorais sobre o texto, sobre a possibilidade de traduzir seu texto e colocá-lo em meu blog. Sem a menor frescura, ele concordou, de modo que segue, abaixo, o texto traduzido. Espero que a tradução tenha feito justiça ao original.
“Se há
um tema de filmes de ação mais popular do que vingança, certamente
não sei qual é. Também não é desafio descobrir o porque. O
ímpeto de retribuir ofensas na mesma moeda é um dos mais básicos
elementos da psicologia humana. Sublinha as leis mais antigas; serve
como princípio norteador de de inúmeras culturas fundadas em honra
ao redor do mundo; funcionou como condutor da História humana desde
que se tem conhecimento da História humana. Vingança é, assim, um
dos mais acessíveis recursos fictícios, mas essa mesma
acessibilidade a torna muito mais fácil de usar do que de usar bem.
Django Livre me levou a
pensar sobre o que usá-la bem singnifica, porque este é, de longe,
o melhor filme de vingança que vi em eras. E eis o mais importante
princípio a que cheguei após tanta ponderação: a diferença entre
uma grande história de vingança e outra nem-tanto é
especificidade. É uma
questão de talhar a retribuição, precisamente, à natureza e
escala do mal a que ela se dirige e de administrar as implicações
sobre em quem incide e por quem é praticado o ato vingador.
Deixe-me dar um exemplo...
Black
Caesar não é propriamente um
filme de vingança, mas seu final se escora em um dos atos de
vingança dos mais sagazes que já vi em um filme. Um dos vilões de
Black Caesar é um
policial racista e corrupto chamado McKinney, enquanto o herói é um
gangster negro chamado Tommy Gibbs. Os personagens se encontram pela
primeira vez quando Gibbs é um garoto que engraxa sapatos por
trocados e McKinney, um patrulheiro de baixa patente. As
circunstâncias de tal encontro são de tamanha relevância que Gibbs
passará a ver, para sempre, McKinney como o rosto simbólico do
preconceito dos brancos. Quando um mafioso contrata Tommy como
entregador de propina para a delegacia de McKinney e o valor vem
menor que o esperado, McKinney desconta no garoto, incriminando-o
injustamente e o espancando tão severamente que ele passará o
resto da vida mancando. Quando eles se reencontram no final do filme,
McKinney é o mais poderoso policial de Nova York (embora ainda
completamente corrupto), Gibss é, provavelmente, o mais poderoso
criminoso e uma trégua de anos entre eles desmoronou, resultando em
violência em massa. O confronto final termina com Gibbs pintando um
McKinney ferido de preto com graxa de sapato e o obrigando, a mão
armada, a cantar “Mammy” antes de esmagar sua cabeça com uma
caixa de engraxate. É a atenção aos detalhes que faz a cena
funcionar, percebeu? O que McKinney representa, o que o método de
sua morte representa, a duração e intimidade do ódio mútuo entre
os dois personagens. Como falei, Black Caesar não
é, realmente, um filme de vingança, mas em nenhuma outra obra vi
retribuição contra racismo retratada com tanta perfeiçáo quanto
na cena de McKinney-com-black-face – até agora. A impressão
emocional deixada por Django Livre
é muito semelhante a ver McKinney encontrar seu acerto de contas por
2 horas e 45 minutos.
A sequência de abertura merece atenção especial, porque faz mais
do que apenas dar início ao filme. Essa sequência de abertura é
uma declaração de intenções. Enquanto uma canção-tema
desconcertantemente alegre, tirada do Django de Sergio
Corbucci (onde seu tom alegre era igualmente desconcertante), a
câmera paira sobre uma paisagem que grita “Western Spaghetti”,
até chegar, finalmente, às costas açoitadas de cinco escravos
negros sendo conduzidos, em grilhões, pela deslumbrantemente
inóspita zona rural do Texas. Então, de cara, tomamos conhecimento
de quatro coisas sobre o filme: 1) Django Livre será
fortamente embasado nas convenções estilísticas de Westerns
europeus; 2) o roteirista/diretor Quentin Tarantino não terá nenhum
constrangimento em roubar descaradamente as porras que servem a seu
propósito; 3) a centralidade da escravidão à obra a tornará mais
um Southern que um Western; e 4) ao contrário de praticamente
todos os filmes de Hollywood sobre o Sul estadunidense pré-Guerra
Civil, Django Livre não terá a menor vergonha em esculachar
toda a cultura da região, por ser baseada em exploração,
brutalidade e corrupção da pior espécie.
Enfim, entre esses escravos está Django (Jamie Foxx), oriundo da
plantação Carucan. Ele e sua esposa, de improvável nome de
Brunhilde Von Schaft (seus proprietários originais eram alemães)
tentaram escapar há algum tempo, mas não chegaram muito longe. O
velho Carucan (Bruce Dern, de The Rebel Rousers e A Casa
Amaldiçoada) rapidamente concluiu que escravos tão astuciosos e
voluntariosos eram dor-de-cabeça desnecessária e, após mandar
açoitá-los e marcá-los com ferro em brasa como fugitivos, deu
ordens para que Django e Brunhilde fossem leiloados e vendidos –
separadamente. Django foi comprado pelos irmãos Speck, Ace (James
Remar, de The Warriors e Tales from the Darkside: The
Movie) e Dicky (James Russo, de A Stranger is Watching e O
Último Portal), que estão, no momento, transportando a ele e
seus quatro companheiros rumo ao oeste. Uma noite, enquanto os Specks
e seus prisioneiros estão a cerca de quarenta milhas do próximo
povoado, são surpreendidos pelo Dr. King Schultz (Christoph Waltz,
de Pact with the Devil e uma das mais recentes versões de She).
Este excêntrico cavalheiro é um imigrante alemão, ex-dentista,
atual caçador de recompensas e quer comprar Django. Os Specks acham
isso muito suspeito e se recusam a vender – ao que Dr. Schultz
mata, a tiros, Dicky e o cavalo de Ace, deixando o último preso sob
seu falecido meio de transporte. Robustecida sua posição na relação
negocial, Schultz saca um recibo de compra-e-venda, dá a Ace US$ 125
e requisita o cavalo e casaco de Dicky para Django. Em seguida, ele
cavalga rumo à pequena cidade de Daughtrey em companhia do
desnorteado escravo, oferecendo, como presente de despedida aos
demais, algumas sugestões sobre como eles devem proceder na hipótese
de não sentirem vontade de continuar sendo escravos.
Em Daughtrey, Django recebe uma demonstração esclarecedora sobre os
métodos de caçar recompensas de Schultz. O xerife da vila (Don
Stroud, de Sutures e Horror em Amityville) é um criminoso
foragido e Schultz tem um mandado de busca por ele, vivo ou morto. Só
de aparecer em Daughtrey com um negro montado cria estardalhaço
suficiente para provocar a aparição do xerife, e executar este a
tiros, na rua, diante dos olhos de metade da cidade, é igualmente
suficiente para chamar a atenção do delegado local – que Schultz
aturde apresentando seu mandado e exigindo sua recompensa de $200.
Nos momentos tranquilos ao longo do caminho, o doutor encontra tempo
para contar a Django que ele também tem um mandado para os irmãos
Brittle – John (M. C. Gainey, de Unearthed e Club Dread),
Ellis (Doc Duhame, de O Monstro do Armário e The
Open Door) e Roger (Cooper Huckabee, de The Pom Pom Girls e
The Funhouse) – que, previamente, trabalharam como feitores
para o velho Carucan. É por isso que King precisa de Django. Ele
nunca viu os homens que está caçando, mas Django os conhece muito
bem. Schultz, destarte, oferece um trato ao escravo: se ajudá-lo a
encontrar os irmãos Brittle, King tornará Django um homem livre.
Na verdade, é mais do que apenas os rostos dos irmãos que Schultz
não conhece. Os Brittles foram vistos recentemente em Gatlinburg,
Tennessee, sendo razoável deduzir que eles ainda estariam
trabalhando como feitores, mas Schultz não faz a menor ideia de quem
seu atual empregador pode ser. Ele e Django não terão alternativa
além de ir de plantação em plantação ao redor da cidade até que
este localize seus alvos. Para isso, precisarão de uma história
para usar como fachada: o dentista fingirá estar comprando uma
escrava de casa experiente, talentosa e bela, enquanto Django posará
como seu lacaio alforriado. Após vestir Django de forma adequada a
seu papel (“Quer dizer que você vai me deixar escolher minhas
próprias roupas?” “É claro.” Corta para Django a cavalo,
parecendo um Disco Godfather pré-Guerra da Secessão), eles
começam a fazer a busca – um processo de que participamos quando
eles chegam na terra de um fazendeiro conhecido como Big Daddy (Don
Johnson, de A Boy and His Dog e Machete). Big Daddy, de
fato, acaba se revelando o novo empregador dos Brittles e o trio não
dura muito após Django avistá-los. O fazendeiro e seus colegas
tentarão vingar os irmãos na noite seguinte, mas a missão acabará
indo... bem, digamos que “explosivamente mal”.
Subsequentemente, Schultz e Django conversam sobre os planos do
recém-alforriado escravo para o futuro. Django conta a King sobre
Brunhilde (que flashbacks revelam ser interpretada por Kerry
Washington), o que leva King a contar a Django a respeito da
legendária homônima de sua esposa, e, rapidamente, os dois acabam
chegando a uma parceria. Django e Schultz passarão o resto do
inverno no Oeste, caçando criminosos e repartindo as recompensas em
67-33%. Entrementes, Schultz ensinará Django a ler e escrever e
treiná-lo em hipismo e uso de armas de fogo. Ao final, na primavera,
eles irão ao Mississippi juntos resgatar Brunhilde.
O plano se mostra mais difícil que o previsto. Os arquivos revelam
que Brunhilde (registrada pelo oficial semiletrado como “Broomhilda”)
foi vendida a Calvin Candie (Leonardo DiCaprio, de Critters 3 e
A Origem), cuja plantação, Candieland, é a terceira maior
do estado e um sinônimo de sofrimento para os escravos de todo o
sul. Candie construiu sua fortuna com algodão, naturalmente, mas sua
verdadeira paixão é o esporte sangrento conhecido como “luta de
mandingos” - pense em rinhas com escravos no lugar de animais. Esta
será a deixa dos caçadores de recompensas. O personagem de King,
desta vez, será um homem tão entediado quanto rico, que quer entrar
no ramo da luta de mandingos comprando um escravo experiente de
alguém que já esteja no negócio. Django, enquanto isso, posará
como o que ele considera a forma de vida humana mais baixa que
existe: um negro mercador de escravos que Schultz teria contratado
para ajudá-lo a escolher os melhores. Eles envolverão Candie com um
negócio de $ 12.000 para comprar um de seus lutadores campeões (um
negócio do qual eles escaparão sob o pretexto de uma viagem à
cidade para convocar o advogado inexistente de Schultz) e, enquanto a
imensa quantia mantém Candie distraído, o manipularão no sentido
de vender Brunhilde também, por algumas centenas de dólares. É um
plano respeitável e Brunhilde já estaria praticamente livre se
Calvin, sua irmã (Laura Cayoutte, de Pulse 2: Afterlife e
Flight of the Living Dead), e seu advogado (Dennis
Christopher, de Blood and Lace e It) fossem os únicos
com quem os conspiradores precisassem se preocupar. Basta dizer que
todos os referidos não primam pelo brilhantismo. Infelizmente,
contudo, os pretensos salvadores de Brunhilde terão que enfrentar o
mordomo escravo de Candie, Stephen (Samuel L. Jackson, de Jurassic
Park e Do Fundo do Mar). É Stephen quem realmente comanda
Candieland, já que Calvin é preguiçoso demais para se dar ao
trabalho, além de despido da inteligência necessária para tal. E,
como um homem que deve todo o seu poder e privilégio a uma brecha no
sistema de castas raciais do Sul, não há nada que ele odeie mais do
que um negro livre com ideias acima do status que lhe é conferido
por tal sistema.
A partir do momento em que vi os primeiros teaser trailers de Django
Livre, eu soube que seria brilhante ou calamitoso – nenhum
meio-terno era possível. Quentin Tarantino foi responsável por
alguns dos mais inteligentes e eficazes pastiches de gêneros dos
últimos vinte anos, mas também foi responsável por algumas das
bagunças mais dolorosas e auto-indulgentes. Por um lado, ele parecia
bastante franco ao querer lidar com a escravidão de uma forma que a
cultura pop nunca quis ou foi capaz de fazer; mas, por outro, ele
também é um branco destrambelhado que parece muito afoito em fazer
seus personagens usarem a palavra “nigger” livremente. E aqui
está Tarantino, praticamente dirigindo um remake de Mandingo
em uma época em que a crise está levando a ainda considerável
população estadunidense de filhos-da-puta racistas a se tornar mais
aberta e loquaz sobre seu preconceito desde a década de 1970. Será
que alguém que admira e emula tão ardentemente os exploitation
movies de épocas passadas poderia realmente fazer um filme sobre
esse tópico que faça justiça à seriedade do material?
Na verdade, ver Django Livre me convenceu de que fazer tal
pergunta é formular a questão de forma invertida. Particularmente
quando comparado com filmes “sérios” sobre a escravidão
americana, Django Livre demonstra que há coisas tão
barrocamente horríveis que só um tratamento exploitation
pode lhes fazer justiça. A não ser que um artista esteja disposto a
sujar as mãos; a não ser que esteja preparado para chamar um
monstro de “monstro”; a não que não sinta o menor
constragimento em acertar a cabeça do público com atrocidades e
lhes esfregar na cara quantidades imensas e fétidas de crueldade –
a não ser, enfim, que o artista tenha a coragem de estar pouco se
fodendo pra decência ou bom-gosto – ele não terá a menor chance
de retratar com honestidade algo grotesco como foi a escravidão
praticada nas Américas. Não há como encarar diretamente a
engenhosidade do mal gerado pela escravidão sem ser sórdido e
ofensivo, porque a própria realidade era sórdida e ofensiva. De
forma lastimável, o povo deste país ainda se encontra em negação
a respeito da escravidão, quase 150 anos após sua abolição; nós
precisamos de arte comercial sobre o Sul pré-Guerra Civil cheia de
estupro, flagelamento, castração e gente sendo marcada com ferro em
brasa. Isso foi a escravidão e já passou da hora de nós, como uma
sociedade, encararmos a história. Amistad, Tempo de Glória
e Raízes não vão nos levar lá, quaisquer que sejam seus
méritos; somente algo como Django Livre pode dar conta do
recado.
Ainda havia, claro, milhões de maneiras de o filme ter saído
errado, o que me conduz de volta aos elementos de vingança e
especificidade. O maior erro de Tempo de Glória foi agir como
se a história girasse em torno do personagem de Matthew Broderick; a
pior coisa que Django Livre podia ter feito seria tentar girar
em torno de King Schultz. Felizmente, Tarantino entendeu isso, de
modo que, embora Schultz conduza a trama por boa parte do filme,
Django está sozinho no momento em que realmente conta, agindo por
sua própria iniciativa. (E, significativamente, a merda fica feia
para nossos heróis no preciso momento em que Schultz começa a dar
vazão a sua indignação de segunda mão, ao invés de facilitar a
de Django). Ademais, os termos do confronto final tornam claro que o
verdadeiro inimigo de Django é algo muito maior que Calvin Candie.
Para salvar Brunhilde, Django deve combater todo o aparato da
escravidão: os donos de plantação, os feitores, os caçadores de
escravos, os advogados, os justiceiros, os facilitadores que lucram
com o sistema de forma indireta que alivia a consciência e até o
eventual escravo que teve a sorte de conseguir uma porção de poder
e agora está disposto a se tornar um tirano se tal for necessário
para mantê-la.
É, estou falando de Stephen. Em um filme notavelmente bem guarnecido
de personagens coadjuvantes inesquecíveis e interpretações
pujantes de tais papéis (até Leonardo DiCaprio está fantástico!),
o Stephen de Samuel L. Jackson, não obstante, se sobressai. Até
mais do que Calvin Candie, Stephen personifica o poder corruptor do
sistema de castas sulista, porque Stephen é o verdadeiro cérebro
por trás do funcionamento de Candieland. Tecnicamente, ele não
passa de um escravo e mordomo, mas é ele quem administra todo o
patrimônio de Candie enquanto o fazendeiro devota suas energias às
lutas de mandingo. Além disso, é ele quem mantém a esperada
disciplina brutal sobre os outros escravos. Ele é um mestre da
manipulação, que sutilmente conduz as ações de seus supostos
superiores fazendo com que eles acreditem que tiveram primeiro as
ideias dele. Acima de tudo, ele é um homem que, corretamente, se
considera a pessoa mais inteligente que conhece, mas esse gênio foi
pervertido em maligno porque o contexto social não lhe permite outra
válvula de escape senão ser o poder por trás de um trono corrupto.
E porque sua posição o exige, Stephen é duas vezes o supremacista
branco que Candie, sua irmã ou seus subalternos matutos. Em verdade,
considerando sua idade (ele afirma estar em Candieland há 76 anos) e
os deveres de um escravo de casa, há razões de sobra para acreditar
que Stephen teve o papel cotidiano de criar Calvin – o que
significa que Calvin adotou suas atitudes odiosas pelo menos
parcialmente através do próprio exemplo de Stephen! Assim, quando
Django chega a cavalo, desdenhando de todas as regras da sociedade
sulista, Stephen tem absoluta razão em considerá-lo uma ameaça e
um inimigo natural. E Tarantino está absolutamente correto em tornar
Stephen o derradeiro oponente de Django.
Atenção: a posição de Stephen como o pior dos vilões não
implica, nem por um segundo, que Tarantino pega leve com os
personagens brancos. Na verdade, é no retrato dos brancos que vemos
como Django Livre realmente é uma condenação inflexível da
cultura sulista. Acima de todas as suas qualidades repugnantes,
Calvin é um francófilo que se arroga em ser chamado de “Monsieur
Candí”, mas não fala uma palavra em francês; ele nem sabe o que
“panache” significa. Batiza um de seus escravos de D'Artagnan, em
homangem ao herói de Os Três Mosqueteiros e suas sequências,
completamente alheio ao fato de que Alexandre Dumas era filho de um
mestiço alforriado e uma escrava afro-caribenha (tornando-o negro o
suficiente para se qualificar segundo o critério sulista de “uma
gota de sangue”). Ele tem frenologia como hobby (permitindo-lhe
tagarelar, ante a menor deixa, sobre a adequação biológica da
escravidão dos negros) e guarda o crânio do predecessor de Stephen,
Old Ben, como uma lembrança mórbida do passado conhecido de
Candieland. Sua irmã não parece tão repulsiva a princípio, mas,
quando Calvin tenta entretar King e Django fazendo Brunhilde mostrar
as cicatrizes em suas costas, ela faz objeção não porque se trata
de algo cruel, desumano e nojento em múltiplos aspectos, mas porque
a mesa de jantar não é lugar apropriado para tais demonstrações.
Big Daddy e seus cavaleiros recebem o que pode ser considerado o
esculacho mais brutal, quando sua emboscada montada contra o que
acham ser o acampamento de Schultz e Django é interrompida por um
flashback de agudo humor negro, que mostra a turba quase se
desintegrando por uma discussão mesquinha e petulante sobre a forma
inepta como foram cortados os buracos dos olhos de seus capuzes de
proto-klansmen. Em resumo, não há nenhum “bom sulista” em quem
o espectador branco possa se projetar, nenhuma contorção de
personalidade (como visto recentimento em Jonah Hex e John
Carter) destinada a mostrar que esta ou aquela figura não é
“aquele tipo de confederado”. Coerentemente, o único personagem
branco com quem se pode genuinamente identificar nem é americano! É
assim que deve ser se o escopo é manter o aliado branco de Django
imaculado pela escravidão, porque até as regiões mais intensamente
abolicionistas do norte pré-Guerra Civil estavam comprometidos não
só pela história, mais pela economia contemporânea. Qualquer
nortista que usasse roupas de algodão, bebesse café, fumasse tabaco
ou consumisse qualquer da vasta gama de produtos que combinassem mal
com os invernos severos e períodos curtos de cultiva acima da
fronteira Mason-Dixon estavam implicados no sistema de escravidão,
tão certamente quanto o feitor que empunhava o chicote. Portanto,
novamente, vemos a admirável atenção de Tarantino aos detalhes e
sua cuidadosa consideração sobre o significado dos elementos de que
se compõe este filme. E, igualmente admirável, vemos que Django
Livre visa ser tão desconfortável em nível intelectual quanto
o é em nível visceral.”