terça-feira, 5 de março de 2013

Considerações de El Santo sobre "Django Livre"



O título do post é, confesso, meio picareta: não estou falando do legendário luchador mexicano (embora tenha certeza de que ele está conosco em espírito), mas do titular do fantástico site www.1000misspenthours.com. Se você ainda não conhece o site, sugiro que o visite - trata-se de prova cabal de como um "leigo" consegue versar, a título de hobby, sobre cinema de forma a deixar no chinelo a esmagadora maioria dos pretensos "críticos profissionais de cinema". Antes de visitá-lo, contudo, sugiro que termine de ler este post.

Quando vi Django Unchained, no início do ano, tive uma surpresa monstruosamente aprazível: apesar de já ter lido (e adorado) o roteiro, o resultado final foi ainda melhor. A obra do Queixada Tarantino é, sem sombra de dúvida, o mais formidável filme norte-americano de 2012, a melhor obra estadunidense que aborda a escravidão nas Américas e, em minha opinião, a melhor obra do diretor. Se eu pudesse mudar qualquer detalhe no filme, não mudaria nada. O entusiasmo, naturalmente, me deixou inclinado a postar sobre o filme, mas, pouco depois de vê-lo, li a resenha sobre o filme em A 1000 Misspent Hours e me encontrei num dilema: por um lado, concordo plenamente com todas as considerações de El Santo sobre o filme; por outro... na verdade, acho que é pelo mesmo lado... concordo tanto que cheguei a conclusão de que, se postasse sobre o filme, acabaria incorrendo em plágio, tamanha a semelhança entre minhas observações e as de El Santo sobre o filme. Tudo que eu tinha a acrescentar já havia sido mencionado (com mais eloquência que eu) pelo post do Ron Perry (de quem só discordo a respeito dos últimos 25 minutos do filme). Cheguei à conclusão de que a melhor saída seria simplesmente postar um link para divulgar a resenha que tanto admirei. Ocorre, entretanto, que boa parte de meu imenso público (minha esposa) não fala nem lê inglês, o que me levou a, desafiando a preguiça, tomar mais uma atitude: consultar Scott "El Santo" Ashlin , titular dos direitos autorais sobre o texto, sobre a possibilidade de traduzir seu texto e colocá-lo em meu blog. Sem a menor frescura, ele concordou, de modo que segue, abaixo, o texto traduzido. Espero que a tradução tenha feito justiça ao original.

“Se há um tema de filmes de ação mais popular do que vingança, certamente não sei qual é. Também não é desafio descobrir o porque. O ímpeto de retribuir ofensas na mesma moeda é um dos mais básicos elementos da psicologia humana. Sublinha as leis mais antigas; serve como princípio norteador de de inúmeras culturas fundadas em honra ao redor do mundo; funcionou como condutor da História humana desde que se tem conhecimento da História humana. Vingança é, assim, um dos mais acessíveis recursos fictícios, mas essa mesma acessibilidade a torna muito mais fácil de usar do que de usar bem. Django Livre me levou a pensar sobre o que usá-la bem singnifica, porque este é, de longe, o melhor filme de vingança que vi em eras. E eis o mais importante princípio a que cheguei após tanta ponderação: a diferença entre uma grande história de vingança e outra nem-tanto é especificidade. É uma questão de talhar a retribuição, precisamente, à natureza e escala do mal a que ela se dirige e de administrar as implicações sobre em quem incide e por quem é praticado o ato vingador. Deixe-me dar um exemplo...

Black Caesar não é propriamente um filme de vingança, mas seu final se escora em um dos atos de vingança dos mais sagazes que já vi em um filme. Um dos vilões de Black Caesar é um policial racista e corrupto chamado McKinney, enquanto o herói é um gangster negro chamado Tommy Gibbs. Os personagens se encontram pela primeira vez quando Gibbs é um garoto que engraxa sapatos por trocados e McKinney, um patrulheiro de baixa patente. As circunstâncias de tal encontro são de tamanha relevância que Gibbs passará a ver, para sempre, McKinney como o rosto simbólico do preconceito dos brancos. Quando um mafioso contrata Tommy como entregador de propina para a delegacia de McKinney e o valor vem menor que o esperado, McKinney desconta no garoto, incriminando-o injustamente e o espancando tão severamente que ele passará o resto da vida mancando. Quando eles se reencontram no final do filme, McKinney é o mais poderoso policial de Nova York (embora ainda completamente corrupto), Gibss é, provavelmente, o mais poderoso criminoso e uma trégua de anos entre eles desmoronou, resultando em violência em massa. O confronto final termina com Gibbs pintando um McKinney ferido de preto com graxa de sapato e o obrigando, a mão armada, a cantar “Mammy” antes de esmagar sua cabeça com uma caixa de engraxate. É a atenção aos detalhes que faz a cena funcionar, percebeu? O que McKinney representa, o que o método de sua morte representa, a duração e intimidade do ódio mútuo entre os dois personagens. Como falei, Black Caesar não é, realmente, um filme de vingança, mas em nenhuma outra obra vi retribuição contra racismo retratada com tanta perfeiçáo quanto na cena de McKinney-com-black-face – até agora. A impressão emocional deixada por Django Livre é muito semelhante a ver McKinney encontrar seu acerto de contas por 2 horas e 45 minutos.

A sequência de abertura merece atenção especial, porque faz mais do que apenas dar início ao filme. Essa sequência de abertura é uma declaração de intenções. Enquanto uma canção-tema desconcertantemente alegre, tirada do Django de Sergio Corbucci (onde seu tom alegre era igualmente desconcertante), a câmera paira sobre uma paisagem que grita “Western Spaghetti”, até chegar, finalmente, às costas açoitadas de cinco escravos negros sendo conduzidos, em grilhões, pela deslumbrantemente inóspita zona rural do Texas. Então, de cara, tomamos conhecimento de quatro coisas sobre o filme: 1) Django Livre será fortamente embasado nas convenções estilísticas de Westerns europeus; 2) o roteirista/diretor Quentin Tarantino não terá nenhum constrangimento em roubar descaradamente as porras que servem a seu propósito; 3) a centralidade da escravidão à obra a tornará mais um Southern que um Western; e 4) ao contrário de praticamente todos os filmes de Hollywood sobre o Sul estadunidense pré-Guerra Civil, Django Livre não terá a menor vergonha em esculachar toda a cultura da região, por ser baseada em exploração, brutalidade e corrupção da pior espécie.

Enfim, entre esses escravos está Django (Jamie Foxx), oriundo da plantação Carucan. Ele e sua esposa, de improvável nome de Brunhilde Von Schaft (seus proprietários originais eram alemães) tentaram escapar há algum tempo, mas não chegaram muito longe. O velho Carucan (Bruce Dern, de The Rebel Rousers e A Casa Amaldiçoada) rapidamente concluiu que escravos tão astuciosos e voluntariosos eram dor-de-cabeça desnecessária e, após mandar açoitá-los e marcá-los com ferro em brasa como fugitivos, deu ordens para que Django e Brunhilde fossem leiloados e vendidos – separadamente. Django foi comprado pelos irmãos Speck, Ace (James Remar, de The Warriors e Tales from the Darkside: The Movie) e Dicky (James Russo, de A Stranger is Watching e O Último Portal), que estão, no momento, transportando a ele e seus quatro companheiros rumo ao oeste. Uma noite, enquanto os Specks e seus prisioneiros estão a cerca de quarenta milhas do próximo povoado, são surpreendidos pelo Dr. King Schultz (Christoph Waltz, de Pact with the Devil e uma das mais recentes versões de She). Este excêntrico cavalheiro é um imigrante alemão, ex-dentista, atual caçador de recompensas e quer comprar Django. Os Specks acham isso muito suspeito e se recusam a vender – ao que Dr. Schultz mata, a tiros, Dicky e o cavalo de Ace, deixando o último preso sob seu falecido meio de transporte. Robustecida sua posição na relação negocial, Schultz saca um recibo de compra-e-venda, dá a Ace US$ 125 e requisita o cavalo e casaco de Dicky para Django. Em seguida, ele cavalga rumo à pequena cidade de Daughtrey em companhia do desnorteado escravo, oferecendo, como presente de despedida aos demais, algumas sugestões sobre como eles devem proceder na hipótese de não sentirem vontade de continuar sendo escravos.

Em Daughtrey, Django recebe uma demonstração esclarecedora sobre os métodos de caçar recompensas de Schultz. O xerife da vila (Don Stroud, de Sutures e Horror em Amityville) é um criminoso foragido e Schultz tem um mandado de busca por ele, vivo ou morto. Só de aparecer em Daughtrey com um negro montado cria estardalhaço suficiente para provocar a aparição do xerife, e executar este a tiros, na rua, diante dos olhos de metade da cidade, é igualmente suficiente para chamar a atenção do delegado local – que Schultz aturde apresentando seu mandado e exigindo sua recompensa de $200. Nos momentos tranquilos ao longo do caminho, o doutor encontra tempo para contar a Django que ele também tem um mandado para os irmãos Brittle – John (M. C. Gainey, de Unearthed e Club Dread), Ellis (Doc Duhame, de O Monstro do Armário e The Open Door) e Roger (Cooper Huckabee, de The Pom Pom Girls e The Funhouse) – que, previamente, trabalharam como feitores para o velho Carucan. É por isso que King precisa de Django. Ele nunca viu os homens que está caçando, mas Django os conhece muito bem. Schultz, destarte, oferece um trato ao escravo: se ajudá-lo a encontrar os irmãos Brittle, King tornará Django um homem livre.

Na verdade, é mais do que apenas os rostos dos irmãos que Schultz não conhece. Os Brittles foram vistos recentemente em Gatlinburg, Tennessee, sendo razoável deduzir que eles ainda estariam trabalhando como feitores, mas Schultz não faz a menor ideia de quem seu atual empregador pode ser. Ele e Django não terão alternativa além de ir de plantação em plantação ao redor da cidade até que este localize seus alvos. Para isso, precisarão de uma história para usar como fachada: o dentista fingirá estar comprando uma escrava de casa experiente, talentosa e bela, enquanto Django posará como seu lacaio alforriado. Após vestir Django de forma adequada a seu papel (“Quer dizer que você vai me deixar escolher minhas próprias roupas?” “É claro.” Corta para Django a cavalo, parecendo um Disco Godfather pré-Guerra da Secessão), eles começam a fazer a busca – um processo de que participamos quando eles chegam na terra de um fazendeiro conhecido como Big Daddy (Don Johnson, de A Boy and His Dog e Machete). Big Daddy, de fato, acaba se revelando o novo empregador dos Brittles e o trio não dura muito após Django avistá-los. O fazendeiro e seus colegas tentarão vingar os irmãos na noite seguinte, mas a missão acabará indo... bem, digamos que “explosivamente mal”.

Subsequentemente, Schultz e Django conversam sobre os planos do recém-alforriado escravo para o futuro. Django conta a King sobre Brunhilde (que flashbacks revelam ser interpretada por Kerry Washington), o que leva King a contar a Django a respeito da legendária homônima de sua esposa, e, rapidamente, os dois acabam chegando a uma parceria. Django e Schultz passarão o resto do inverno no Oeste, caçando criminosos e repartindo as recompensas em 67-33%. Entrementes, Schultz ensinará Django a ler e escrever e treiná-lo em hipismo e uso de armas de fogo. Ao final, na primavera, eles irão ao Mississippi juntos resgatar Brunhilde.
O plano se mostra mais difícil que o previsto. Os arquivos revelam que Brunhilde (registrada pelo oficial semiletrado como “Broomhilda”) foi vendida a Calvin Candie (Leonardo DiCaprio, de Critters 3 e A Origem), cuja plantação, Candieland, é a terceira maior do estado e um sinônimo de sofrimento para os escravos de todo o sul. Candie construiu sua fortuna com algodão, naturalmente, mas sua verdadeira paixão é o esporte sangrento conhecido como “luta de mandingos” - pense em rinhas com escravos no lugar de animais. Esta será a deixa dos caçadores de recompensas. O personagem de King, desta vez, será um homem tão entediado quanto rico, que quer entrar no ramo da luta de mandingos comprando um escravo experiente de alguém que já esteja no negócio. Django, enquanto isso, posará como o que ele considera a forma de vida humana mais baixa que existe: um negro mercador de escravos que Schultz teria contratado para ajudá-lo a escolher os melhores. Eles envolverão Candie com um negócio de $ 12.000 para comprar um de seus lutadores campeões (um negócio do qual eles escaparão sob o pretexto de uma viagem à cidade para convocar o advogado inexistente de Schultz) e, enquanto a imensa quantia mantém Candie distraído, o manipularão no sentido de vender Brunhilde também, por algumas centenas de dólares. É um plano respeitável e Brunhilde já estaria praticamente livre se Calvin, sua irmã (Laura Cayoutte, de Pulse 2: Afterlife e Flight of the Living Dead), e seu advogado (Dennis Christopher, de Blood and Lace e It) fossem os únicos com quem os conspiradores precisassem se preocupar. Basta dizer que todos os referidos não primam pelo brilhantismo. Infelizmente, contudo, os pretensos salvadores de Brunhilde terão que enfrentar o mordomo escravo de Candie, Stephen (Samuel L. Jackson, de Jurassic Park e Do Fundo do Mar). É Stephen quem realmente comanda Candieland, já que Calvin é preguiçoso demais para se dar ao trabalho, além de despido da inteligência necessária para tal. E, como um homem que deve todo o seu poder e privilégio a uma brecha no sistema de castas raciais do Sul, não há nada que ele odeie mais do que um negro livre com ideias acima do status que lhe é conferido por tal sistema.

A partir do momento em que vi os primeiros teaser trailers de Django Livre, eu soube que seria brilhante ou calamitoso – nenhum meio-terno era possível. Quentin Tarantino foi responsável por alguns dos mais inteligentes e eficazes pastiches de gêneros dos últimos vinte anos, mas também foi responsável por algumas das bagunças mais dolorosas e auto-indulgentes. Por um lado, ele parecia bastante franco ao querer lidar com a escravidão de uma forma que a cultura pop nunca quis ou foi capaz de fazer; mas, por outro, ele também é um branco destrambelhado que parece muito afoito em fazer seus personagens usarem a palavra “nigger” livremente. E aqui está Tarantino, praticamente dirigindo um remake de Mandingo em uma época em que a crise está levando a ainda considerável população estadunidense de filhos-da-puta racistas a se tornar mais aberta e loquaz sobre seu preconceito desde a década de 1970. Será que alguém que admira e emula tão ardentemente os exploitation movies de épocas passadas poderia realmente fazer um filme sobre esse tópico que faça justiça à seriedade do material?

Na verdade, ver Django Livre me convenceu de que fazer tal pergunta é formular a questão de forma invertida. Particularmente quando comparado com filmes “sérios” sobre a escravidão americana, Django Livre demonstra que há coisas tão barrocamente horríveis que só um tratamento exploitation pode lhes fazer justiça. A não ser que um artista esteja disposto a sujar as mãos; a não ser que esteja preparado para chamar um monstro de “monstro”; a não que não sinta o menor constragimento em acertar a cabeça do público com atrocidades e lhes esfregar na cara quantidades imensas e fétidas de crueldade – a não ser, enfim, que o artista tenha a coragem de estar pouco se fodendo pra decência ou bom-gosto – ele não terá a menor chance de retratar com honestidade algo grotesco como foi a escravidão praticada nas Américas. Não há como encarar diretamente a engenhosidade do mal gerado pela escravidão sem ser sórdido e ofensivo, porque a própria realidade era sórdida e ofensiva. De forma lastimável, o povo deste país ainda se encontra em negação a respeito da escravidão, quase 150 anos após sua abolição; nós precisamos de arte comercial sobre o Sul pré-Guerra Civil cheia de estupro, flagelamento, castração e gente sendo marcada com ferro em brasa. Isso foi a escravidão e já passou da hora de nós, como uma sociedade, encararmos a história. Amistad, Tempo de Glória e Raízes não vão nos levar lá, quaisquer que sejam seus méritos; somente algo como Django Livre pode dar conta do recado.

Ainda havia, claro, milhões de maneiras de o filme ter saído errado, o que me conduz de volta aos elementos de vingança e especificidade. O maior erro de Tempo de Glória foi agir como se a história girasse em torno do personagem de Matthew Broderick; a pior coisa que Django Livre podia ter feito seria tentar girar em torno de King Schultz. Felizmente, Tarantino entendeu isso, de modo que, embora Schultz conduza a trama por boa parte do filme, Django está sozinho no momento em que realmente conta, agindo por sua própria iniciativa. (E, significativamente, a merda fica feia para nossos heróis no preciso momento em que Schultz começa a dar vazão a sua indignação de segunda mão, ao invés de facilitar a de Django). Ademais, os termos do confronto final tornam claro que o verdadeiro inimigo de Django é algo muito maior que Calvin Candie. Para salvar Brunhilde, Django deve combater todo o aparato da escravidão: os donos de plantação, os feitores, os caçadores de escravos, os advogados, os justiceiros, os facilitadores que lucram com o sistema de forma indireta que alivia a consciência e até o eventual escravo que teve a sorte de conseguir uma porção de poder e agora está disposto a se tornar um tirano se tal for necessário para mantê-la.

É, estou falando de Stephen. Em um filme notavelmente bem guarnecido de personagens coadjuvantes inesquecíveis e interpretações pujantes de tais papéis (até Leonardo DiCaprio está fantástico!), o Stephen de Samuel L. Jackson, não obstante, se sobressai. Até mais do que Calvin Candie, Stephen personifica o poder corruptor do sistema de castas sulista, porque Stephen é o verdadeiro cérebro por trás do funcionamento de Candieland. Tecnicamente, ele não passa de um escravo e mordomo, mas é ele quem administra todo o patrimônio de Candie enquanto o fazendeiro devota suas energias às lutas de mandingo. Além disso, é ele quem mantém a esperada disciplina brutal sobre os outros escravos. Ele é um mestre da manipulação, que sutilmente conduz as ações de seus supostos superiores fazendo com que eles acreditem que tiveram primeiro as ideias dele. Acima de tudo, ele é um homem que, corretamente, se considera a pessoa mais inteligente que conhece, mas esse gênio foi pervertido em maligno porque o contexto social não lhe permite outra válvula de escape senão ser o poder por trás de um trono corrupto. E porque sua posição o exige, Stephen é duas vezes o supremacista branco que Candie, sua irmã ou seus subalternos matutos. Em verdade, considerando sua idade (ele afirma estar em Candieland há 76 anos) e os deveres de um escravo de casa, há razões de sobra para acreditar que Stephen teve o papel cotidiano de criar Calvin – o que significa que Calvin adotou suas atitudes odiosas pelo menos parcialmente através do próprio exemplo de Stephen! Assim, quando Django chega a cavalo, desdenhando de todas as regras da sociedade sulista, Stephen tem absoluta razão em considerá-lo uma ameaça e um inimigo natural. E Tarantino está absolutamente correto em tornar Stephen o derradeiro oponente de Django.

Atenção: a posição de Stephen como o pior dos vilões não implica, nem por um segundo, que Tarantino pega leve com os personagens brancos. Na verdade, é no retrato dos brancos que vemos como Django Livre realmente é uma condenação inflexível da cultura sulista. Acima de todas as suas qualidades repugnantes, Calvin é um francófilo que se arroga em ser chamado de “Monsieur Candí”, mas não fala uma palavra em francês; ele nem sabe o que “panache” significa. Batiza um de seus escravos de D'Artagnan, em homangem ao herói de Os Três Mosqueteiros e suas sequências, completamente alheio ao fato de que Alexandre Dumas era filho de um mestiço alforriado e uma escrava afro-caribenha (tornando-o negro o suficiente para se qualificar segundo o critério sulista de “uma gota de sangue”). Ele tem frenologia como hobby (permitindo-lhe tagarelar, ante a menor deixa, sobre a adequação biológica da escravidão dos negros) e guarda o crânio do predecessor de Stephen, Old Ben, como uma lembrança mórbida do passado conhecido de Candieland. Sua irmã não parece tão repulsiva a princípio, mas, quando Calvin tenta entretar King e Django fazendo Brunhilde mostrar as cicatrizes em suas costas, ela faz objeção não porque se trata de algo cruel, desumano e nojento em múltiplos aspectos, mas porque a mesa de jantar não é lugar apropriado para tais demonstrações. Big Daddy e seus cavaleiros recebem o que pode ser considerado o esculacho mais brutal, quando sua emboscada montada contra o que acham ser o acampamento de Schultz e Django é interrompida por um flashback de agudo humor negro, que mostra a turba quase se desintegrando por uma discussão mesquinha e petulante sobre a forma inepta como foram cortados os buracos dos olhos de seus capuzes de proto-klansmen. Em resumo, não há nenhum “bom sulista” em quem o espectador branco possa se projetar, nenhuma contorção de personalidade (como visto recentimento em Jonah Hex e John Carter) destinada a mostrar que esta ou aquela figura não é “aquele tipo de confederado”. Coerentemente, o único personagem branco com quem se pode genuinamente identificar nem é americano! É assim que deve ser se o escopo é manter o aliado branco de Django imaculado pela escravidão, porque até as regiões mais intensamente abolicionistas do norte pré-Guerra Civil estavam comprometidos não só pela história, mais pela economia contemporânea. Qualquer nortista que usasse roupas de algodão, bebesse café, fumasse tabaco ou consumisse qualquer da vasta gama de produtos que combinassem mal com os invernos severos e períodos curtos de cultiva acima da fronteira Mason-Dixon estavam implicados no sistema de escravidão, tão certamente quanto o feitor que empunhava o chicote. Portanto, novamente, vemos a admirável atenção de Tarantino aos detalhes e sua cuidadosa consideração sobre o significado dos elementos de que se compõe este filme. E, igualmente admirável, vemos que Django Livre visa ser tão desconfortável em nível intelectual quanto o é em nível visceral.”

sábado, 23 de fevereiro de 2013

"A Hora Mais Escura (Zero Dark Thirty)" demonstra que Kathryn Bigelow tem mais bagos que muito diretor metido a macho


Há algumas semanas, li um artigo da Cracked.com que versava sobre diretores ruins que, acidentalmente, fizeram bons filmes. Se quiser, leia o texto aqui. Entre os cineastas que se enquadrariam em tal categoria está Kathryn Bigelow - The Hurt Locker seria a sua exceção à ruindade. Diante de tal assertiva, concluí: "BULLSHIT!!!" Kathryn Bigelow (ou K-Bigs, como a chamarei doravante), em minha humilde opinião, sempre foi uma diretora completamente badass. Ao lado de Antonia Byrd, é uma das poucas cineastas cujo toque feminino consiste em fazer filmes de macho mais casca-grossa que a maioria dos filmes de ação americanos que saem todo ano. The Hurt Locker, é claro, é um prova cabal disso - apesar de ser um grande admirador de Avatar, creio que se trata de um dos poucos casos em que o Oscar foi, realmente, para o melhor filme.

Ocorre, contudo, que The Hurt Locker está longe de ser uma exceção. Meu primeiro contato com a obra de K-Bigs foi Caçadores de Emoção (Point Break), que já considero um clássico - um filme de ação/policial extremamente bem-dirigido, com um Keanu Reeves surpreendentemente convincente (fingir ser um surfista playboy não deve ter exigido muito esforço, claro), Patrick Swayze como um antagonista carismático que acaba conquistando o público e, naturalmente, a presença mágica de The Buse, cuja magnificência já acrescenta pontos de foderosidade a qualquer obra de que participe.

Louco como uma caralha: Tudo fica melhor com Gary Busey.
Sendo fã inveterado de histórias de vampiros (desde que eles não brilhem e matem ou vampirizem humanos idiotas, porque, em caso contrário, WTF?), acabei, posteriormente, deparando-me com mais uma pérola da diretora: Quando Chega a Escuridão (Near Dark). Contrariando toda uma tradição literária e cinematográfica emo que macaqueia a Anne Rice, Near Dark é uma "visão revisionista da lenda do vampiro" bastante diferente da média: ao invés de janotas eurotrash tendo crises de consciência e lamentando seu vazio existencial, Near Dark mostra vampiros fodões  que saem por aí num furgão massa, atacando bares de beira de estrada e barbarizando humanos amanezados. Além do roteiro instigante, o filme tem bela direção e fotografias, que conseguem construir atmosfera gótica no oeste americano.

ISSO É QUE É UM ASSASSINO DE VERDADE, BELLA!
Outro exemplo? Strange Days. Apesar de extremamente datado (a virada do milênio na vida real foi bem menos empolgante), trata-se de um dos poucos filmes que lida com informática em geral e pirataria em particular que parece ter sido feito por alguém que, simultaneamente, tem ideia de como funciona um computador (Len Wiseman: Não dá pra assumir o controle de um avião ou helicóptero com um laptop, porra!) e sabe como construir um filme envolvente. 

Como The Hurt Locker, todos esses filmes tem homens como personagens centrais e entendem muito bem a psiquê masculina. Há alguns posts atrás, ao falar sobre Luta com Lobos, ponderei as diferenças entre filmes voltados ao público masculino e filmes que visam o público feminino. Hurt Locker é um dos raros casos de "filme pra macho" dirigido com perfeição por uma mulher. Claro, a premiada obra gira em torno de um monte de homens fazendo coisas másculas. A Hora Mais Escura, apesar de seguir um estilo bastante semelhante a Hurt Locker tem uma distinção: trata-se de uma obra com trama muito mais abrangente e complexa (épica, eu diria) e possui, como protagonista, uma mulher que se faz respeitar num ambiente extremamente machista, conseguindo ser completamente foda sem jamais perder a feminilidade.

A mulher em questão é Maya, interpretada com maestria por Jessica Chastain. Após breve abertura mostrando, somente através de áudio, notícias e reações aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, o filme avança dois anos e conduz o espectador a uma prisão clandestina da CIA, onde o interrogador Dan (Jason Clarke)  está introduzindo o recém-capturado Ammar (Reda Kateb) às táticas de investigação "supralegais" da agência, observado por uma encapuzada e visivelmente desconcertada Maya, que, aparentemente, está em seu primeiro trabalho em campo. Aqui, o filme já ganhou minha simpatia ao mostrar, de forma seca e objetiva que a tortura é, ao contrário de todas as alegações oficiais em contrário, procedimento-padrão para obter informações e (o mais importante) sem emitir qualquer juízo de valor sobre a prática. Após ficar de saco cheio e concluir que vai ser preciso mais tempo para dobrar o terrorista cativo, Dan é convencido pela protagonista a prosseguir com o baculejo. É aí que começamos a ver a verdadeira natureza de Maya, que decide presenciar as sessões de tortura seguintes sem capuz (indagada pelo colega, ela justifica a escolha observando que ele não está ocultando o rosto) e, diante de um apelativo pedido de ajuda de Ammar, oferece resposta em tom delicado, mas de teor brutal: "Você pode se ajudar falando a verdade."

Após muita tortura física e psicológica, os dois agentes conseguem, através de um brilhante xaveco elaborado por Maya, usar um atentado terrorista de forma construtiva e convencer o terrorista a dar com a língua nos dentes.

HAHAHAHA! You're a fucking dipshit, Ammar!
A confissão acaba revelando um nome até então desconhecido - Abu Ahmed, suposto mensageiro de Osama Bin Laden. Convencida de que tal indivíduo é a chave para chegar ao chefe da Al Qaeda e cética em relação à teoria mais aceita (a saber, que Bin Laden estaria escondido em territórios tribais, provavelmente em uma caverna), Maya vai passar os próximos nove anos, a despeito da incredulidade de praticamente todos os colegas e superiores, usando toda a sua perspicácia e determinação para localizar o moleque-de-recados-de-luxo. A saga vai mostrar a agente deixando, gradualmente, seus melindres de lado, até emular perfeitamente seu tutor em sessões de tortura, partir para a truculência e intimidação de colegas e superiores e, finalmente, conduzir à operação do Team 6 dos Navy Seals que (SPOILERS para quem viveu isolado do resto da humanidade nos últimos dez anos; aliás, se você vive isolado da humanidade e está lendo isto, como conseguiu acesso a Internet?) localizou e eliminou o nada saudoso Osama.

Contrariando minha prolixidade habitual, não vou entrar em detalhes sobre a trama. Basta dizer, apenas, que o filme segue um roteiro instigante, envolvente e minucioso e que, apesar de poucas sequências de ação, não perde a atenção do espectador por um segundo. Embora tenha estilo semelhante a Hurt Locker, confesso que o filme que mais me vem à mente ante a abordagem seca, direta e detalhista (parar de prestar atenção ao filme por alguns segundos pode levar o espectador a perder completamente o fio de meada) de K-Bigs é o clássico O Dia do Chacal: como a obra-prima de Fred Zinnemann, Zero Dark Thirty consiste, basicamente, num longo e complicado trabalho de investigação, com fotografia naturalista,  sem tentar incutir no espectador qualquer valoração moral dos atos dos personagens e usando de pouquíssima pirotecnia até a espetacular sequência final - uma reconstituição primorosa, mostrando domínio de Bigelow sobre cinema puro, da operação dos Navy Seals que culminou com a execução de Bin Laden. Como o Inspetor Lebel de Day of the Jackal, Maya se aproxima de seu alvo através de investigação excruciante e incansável, instinto,  persistência inabalável e completa indiferença às frescuras de seus superiores. A gradual transformação da personagem, de mocinha-com-cara-de-professora-de-pré-escola-melindrada-com-tortura para agente casca-grossa que não hesita em dar carteiradas, prender e arrebentar e consegue se impor entre a macharada que domina seu ambiente de trabalho é completamente verossímil e me fez pensar que a diretora imprimiu um toque autobiográfico à personagem. Aproveitando o ensejo, tenho que tecer um comentário a respeito da interpretação de Chastain. Ronald Perrone, amigo cuja opinião muito prezo, comentou comigo que achou a personagem um pouco forçada. Eu concordo que, a princípio, as tentativas de intimidação usadas pela personagem, de fato, parecem artificiais, mas não considero tal impressão fruto de uma interpretação ruim. Com base em experiência particular, acredito que a "interpretação forçada" foi intencional: Maya, em minha percepção, é uma pessoa de índole pacífica e avessa a conflitos que se obriga a ser truculenta porque, caso não o faça, não logrará sucesso em sua missão. Ao longo do filme, a atitude da personagem vai se tornando cada vez mais natural e convincente, de modo que, quando ela finalmente diz aos Navy Seals que "Bin Laden está lá e vocês vão matá-lo para mim", Maya parece ter assimilado a atitude badass, que se torna parte de sua personalidade.

Além da direção impecável, roteiro enxuto e despido de enrolações ou juízos de valor, e da formidável interpretação de Chastain, posso citar vários outros artistas que contribuem, com participações de peso, para a excelência da obra: Mark Strong, como superior hierárquico que profere um discurso que só posso qualificar como "versão homicida do clássico close it do Alec Baldwin em Glengarry Glen Ross"; Stephen Dillane, como um supervisor da Agência Nacional de Segurança estadunidense, a NSA, que lembra muito o estilo curto, grosso e completamente despido de tolerância a picaretagens do Stannis Baratheon de Game of Thrones; James Gandolfini, excelente como sempre, interpretando o diretor da CIA como um indivíduo tão astucioso quanto e muito menos inseguro que seu personagem mais famoso; e Joel Edgerton (que sempre vi como "a versão jovem daquele bunda-mole do Owen Lars de Star Wars"), muito convincente como um Navy Seal badass. O filme conta ainda com uma curta participação de Scott Adkins que, não obstante os poucos diálogos do personagem, muito me agradou - como já disse antes, acho que o ator britânico tem potencial para ser um astro e a presença dele, por menor que seja, num blockbuster hollywoodiano pode ser o primeiro passo para o estrelato. Caso que considero análogo ao de Adkins é o do Tom Hardy, que começou com personagens que passaram despercebidos (como o Clarkie de Layer Cake e um soldado em Falcão Negro em Perigo) e, hoje, é um ator A-List.

Para ser inteiramente justo, tenho que apontar alguns defeitos do filme: duas sequências de suposto suspense (o carro-bomba no Afeganistão e a tentativa de assassinar Maya) são telegrafadas - segundos antes do clímax, já consegui adivinhar o desfecho das sequências. Nada, entretanto, que macule a excelência generalizada do filme. E, como já referi, a reconstituição da operação que culmina com a morte de Bin Laden (apesar de ter uma conclusão de conhecimento público e notório) é soberba e prende a atenção do espectador do início ao fim, não obstante sua longa duração. A sequência, aliás (apesar de ser dirigida com a mesma neutralidade que o resto do filme), me fez perceber o fundamento mais forte da ojeriza que sinto por indivíduos da laia do Osama: a hipocrisia dos referidos filhos da puta, que convencem moleques influenciáveis de que se matar, levando "infiéis" junto consigo é um passaporte para o Paraíso, enquanto eles, os líderes, preferem ficar bem acomodados em fortalezas e não hesitam em usar mulheres e crianças como escudo.

Yes, now the rains weep o'er his hall and not a soul to hear!
E, contrariando o teor do artigo da Cracked.com que mencionei no início do post, a cena final de A Hora Mais Escura mostra um tema comum à filmografia de K-Bigs: como Will James, Johnny Utah e Bodhi, Maya é uma personagens cuja vida gira em torno de sua missão e que, após o cumprimento do dever, se vê completamente despida de propósito.

Não vou dizer que Zero Dark Thirty é o melhor filme estadunidense do ano (atribuo tal título a Django Livre), mas posso dizer, com certeza, que é um dos melhores e prova cabal de que Kathryn Bigelow é uma das profissionais mais foda em atividade. E, para fechar com chave de ouro, K-Bigs, já nos seus sessenta  e um anos, continua sendo um mulherão:

Yummy granny!
Não recomendo, contudo, a ninguém que passe uma cantada idiota na moça: apesar de gata, ela parece também ser plenamente capaz de cobrir o cidadão médio de porradas. Limitem-se a ver Zero Dark Thirty, que é foda e não vai ferir a integridade física de ninguém além dos membros da Al Qaeda. O que não é problema porque, sinceramente, fuck those guys. Waterboard neles!

P.S.: A cena em que o Chris Pratt se prepara para o ataque ouvindo Tony Robbins e comentando com os colegas que tem "grandes planos" para compartilhar depois da operação é hilária, mas tenho que admitir que faz sentido. Podem me sacanear, mas Tony Robbins é foda, cara!