quarta-feira, 29 de abril de 2009

The Sadistic Baron Von Klaus: Jess Franco Visionário?


O espanhol Jesus "Jess" Franco é um homem polêmico para os fãs de cinema exploitation. Muitos o consideram um gênio incompreendido; outros, um picareta desleixado. Eu costumo me filiar à segunda corrente, mas é inegável que o homem tem uma visão artística singular. Só creio que é uma péssima visão. Mas não tenho moral para falar, afinal, considero Lucio Fulci, outro papa da exploitation tido por muitos como um picareta, um gênio do cinema, apesar das muitas porcarias que ele dirigiu no final da carreira (para ter uma idéia, sustento, sem vergonha, que acho seu "Zombi 2" superior ao "Dawn of the Dead" de Romero e acho que "House by the Cemetery", além de funcionar como um filme de terror convencional, é uma genial alegoria freudiana).

Mas, enfim, os filmes de Jess Franco, para mim, só tem valor, via de regra, como diversão trash. E essa opinião só contribuiu para o meu choque ao topar com a obra de que vou falar agora: The Sadistic Baron Von Klaus/La Mano de un Hombre Muerto, décimo filme dirigido pelo espanhol, em 1962. Já havia me surpreendido com The Awful Dr. Orlof/Gritos en La Noche, mas, este foi um filme que considerei apenas um gótico muito bom e feito com um profissionalismo que achava além da capacidade de Franco, mas nada à altura de coisas como o Black Sunday de Bava ou o Dr Hichcock de Riccardo Freda.

A premissa do filme é bastante convencional: há vários séculos, donzelas do vilarejo de Holfen eram sequestradas, torturadas e mortas pelo fidalgo local, o Barão Von Klaus. Fatalmente, os aldeões acabaram se emputecendo com essa situação e invadiram o castelo para justiçar o nobre psicopata. Este, entretanto, escapou, fugindo pelos pântanos que cercavam o castelo, onde acabou morrendo afogado. Desde então, corre a lenda, uma maldição paira sobre a família: de tantos em tantos anos, o espírito do barão retorna, encarnando em um de seus descendentes, que procede a dar continuidade às atrocidades do aristocrata. O título de nobreza, atualmente, é portado por Max Von Klaus (Howard Vernon). A história é contada por um par de desocupados (até agora não logrei descobrir a profissão dos dois), Hanzel e Theo, a um escritor que se encontra hospedado no hotel do lugarejo.

O drama se inicia com o jovem Ludwig Von Klaus retornando para o castelo da família a fim de ver sua mãe moribunda pela última vez e, antes que esta expire, apresentá-la a sua noiva, Karine. A velha bate as botas, mas não sem antes de deixar claro ao mancebo que a maldição, em seu entender, é uma realidade e que o avô do rapaz sucumbiu à mesma, tendo cometido vários homicídios e morrendo da mesma forma que seu antepassado infame. Extrai, ainda, a promessa de que Ludwig vai destruir os artefatos guardados pelo seu avô no porão do castelo e partir de Holfen para nunca mais voltar - a única maneira, segunda a geriatra, do mancebo escapar da maldição.

Na mesma manhã da chegada do membro mais jovem da família Von Klaus, dois fatos importantes para a história ocorrem: os dois vagabundos supracitados encontram o cadáver de uma moça que, tudo indica, pereceu de forma similar às vítimas do antigo barão, e Karl Steiner, um repórter de tablóide, é enviado por seu editor a Holfen, a fim de investigar a suposta maldição.

Lá chegando, o mané conhece a gostosa garçonete do boteco local, Margaret, troca tiradas "espirituosas" com o policial encarregado do caso, Borowski, e, como todo repórter de filme, decide meter o bedelhos nas investigações.

A próxima vítima é uma cantora de cabaré de passagem pelo Karnburg Hotel, que encontra em sigilo seu amante num dos quartos. No meio do bem-bom, o rapaz (cujo rosto nunca vemos, evidentemente) dá uma de Sharon Stone e mete facadas na moça. Como na vítima anterior, o único vestígio encontrado pela polícia são traços de um metal enferrujado, típico de uma adaga medieval.

Surpreendentemente para um filme desta espécie, Borowski adota uma medida que, sob o ponto de vista da criminalística, faz sentido: ele faz um levantamento de quem estava no hotel na noite do crime e interroga a todos, a fim de encontrar uma pista. Todos os depoimentos apontam como principal suspeito um tal "Monsieur Brenner", que se hospedou no hotel na noite do assassinato e que, aparentemente, saiu na mesma noite. "Brenner", acaba-se descobrindo, é ninguém menos que Max Von Klaus. Levado a interrogatório (que, numa dessas coisas que só acontecem em filme, é feito na presença do jornalista), o barão deixa óbvio que não tem álibi convincente e nem sabe informar que horas chegou e saiu do hotel, nem por que estava lá (algumas respostas, entretanto, fazem sentido: indagado a respeito de horário em que saiu do hotel, Von Klaus retruca: "não achava que fossem me perguntar, por isso não olhei o relógio", para a irritação do comissário). Por conseguinte, Von Klaus é deixado a ver o sol nascer quadrado até segunda ordem. Steiner, porém, fica convencido de que o barão é inocente, alegando que, caso fosse culpado, o suspeito teria um álibi bem armado (lógica que, como bem aponta o policial, é muito interessante na ficção, mas não vinga muito na vida real; felizmente, para o repórter, ele está numa história fictícia).

Dois fatores, contudo, conspiram para sugerir a inocência do atual barão. Primeiro, a amante do moço, proprietária do boteco local, comparece à delegacia e informa ao comissário Borowski que Von Klaus foi ao hotel para um sexy-time com ela. O motivo para todo o sigilo, explica ela, é que o "escândalo" poderia lhe causar problemas em seu processo de divórcio, ainda em juízo.

O segundo fator, ainda mais relevante, é que, ao voltar para casa, a moça é seguida por um indivíduo dos mais suspeitos, trajando sobretudo, chapéu e luvas pretas.

Chegando em casa, ela começa a colocar trajes mais "confortáveis", quando o indivíduo (o assassino, obviamente) irrompe janela adentro e a ataca. Os desígnios do facínora, contudo, são frustrados pela vigorosa defesa da moça e da igualmente vigorosa gritaria desta, que atrai os vizinhos e obriga o homicida a picar a mula. Isso conduz a uma das melhores sequências do filme, na qual o assassino é perseguido por uma multidão pelas ruas, por uma floresta e, finalmente, pelo sinistro cemitério de Holfen, onde finalmente consegue despistá-la, desaparecendo, por coincidência, na cripta da família Von Klaus (Oooooh!).

A partir daí, não vou revelar mais nada. Quem será o assassino? Max von Klaus, que estava preso quando uma das tentativas de assassinato ocorreu? Ludwig, o outro homem da família, que chegou após o início dos homicídios? O escritor, que tentou, sem sucesso, investir na cantora pouco antes da morte desta? Será que há mais de um assassino? Será que a maldição é ainda mais literal do que se pensa, e o assassino é, de fato, o fantasma do falecido barão? A identidade do vilão é revelada numa cena em que Margaret, a garçonete boazuda, resolve partir para uma noite de oba-oba com seu amante e descobre, da pior maneira possível, quem anda matando as beldades da vila. E a cena em que a identidade do assassino é revelada é, sem dúvida, inacreditável para o ano em que foi produzida: ela envolve Margaret nua passando por uma (aparentemente, pela expressão da jovem) extremamente aprazível sessão de sexo oral e sendo submetida, justamente quando está "no ponto", a uma série de violentas chicotadas, acorrentada ao teto e "finalizada" com instrumentos metálicos em brasa. É um negócio ainda mais transgressor do que Bava fez um ano depois, em Whip and the Body, e um prenúncio do que viria a ser uma das marcas registradas de Franco: a cena é fortemente erotizada e fica claro que o espanhol queria não só chocar, mas excitar o espectador. No meu caso, tenho que admitir que funcionou. Isso significa que eu sou um psicopata? Você decide.

O que enriquece o filme, contudo, é a maneira como Franco mescla elementos clássicos do cinema de horror com inovações, de modo a lhe dar nota peculiar. É verdade que ele já havia feitos coisa semelhante em Orlof, onde havia uma forte influência visual dos filmes de terror da Universal, associado ao cinema expressionista alemão, à sanguinolência explícita (para os padrões da época) da Hammer e dos góticos italianos, histórias de cientista louco e uma trama mais ou menos plagiada de Les Yeux Sans Visage, de Georges Franju. Diferente do filme anterior, contudo, Franco mistura um visual típico dos clássicos da Universal e do expressionismo com elementos de um gênero que ainda estava em formação (daí o "visionário" do título): o giallo. Vários dos caracteres que se tornariam típicos deste subgênero - o excesso de suspeitos; as aparições do assassino, caracterizadas apenas pelo vislumbrar, conforme a situação, do casaco, o chapéu ou as luvas; a atuação policial inepta; a motivação psicossexual do vilão, as cenas de perseguição em ruas desertas e a "herança familiar" ligada aos homicídios - embora tenham tomado forma ao longo da segunda metade da década de 60, só se solidificariam, de fato, na década de 70. Estão, contudo, todos presentes aqui.

Mas essa é só a cereja do bolo. Como o já resenhado Whip and the Body, o filme certamente agradará a qualquer fã do horror gótico europeu da década de 60. Como no anterior Dr. Orlof, Franco exibe um domínio técnico que estaria morto e enterrado na fase mais "madura" de sua carreira, com excelente uso do cinemascope e da fotografia em preto e branco para a construção de uma densa atmosfera gótica. O comic relief dos dois vagabundos e das interações "espirituosas" entre Steiner e Borowski é tolerável, jamais chegando chegando a ser excessivamente irritante. Aspectos que costumam ser criticados no filme são a maneira lenta como a trama se desenrola e o excesso de atenção dado a personagens aparentemente irrelevantes. Eu não sou um dos críticos de tais aspectos. Em minha opinião, eles contribuem para dar um panorama de como é a vida em Holfen e tornam mais palpável a paranóia instaurada pelos homicídios - mais ou menos como Stephen King sabia fazer no início da carreira. Ademais, nenhum desses personagens a quem é dada atenção é realmente irrelevante - todos contribuem, de alguma forma para a trama (exemplo típico é Margaret, que parece estar no filme só para exibir o popozão e conversar com os bêbados, e acaba protagonizando a cena em que é revelada a identidade do vilão). E até a trilha sonora, mesmo quando descamba para uns floreios "jazzísticos", complementa perfeitamente a ação. O que realmente arrasta a história são os "momentos humorísticos" entre o jornalista e o policial, a cena do interrogatório no hotel (que devia ter sido mais resumida) e o surgimento de outro elemento que viria a ser marca registrada de Franco: os desnecessários "momentos musicais" em bares/boates. Nada, contudo, que prejudique severamente o filme.

E a história é concluída de forma excelente e satisfatória (ao contrário do final de The Awful Dr Orlof, que tem um espírito de "já matou o monstro, vamos encerrar logo esta porra").

Minha intenção era deixar um clipe da cena de tortura, mas, como isso revelaria a identidade do assassino, optei pela cena em que o vilão é perseguido pelos moradores de Holfen.

terça-feira, 28 de abril de 2009

The Incredible Melting Man


Estou chegando à conclusão de que eu era uma criança meio idiota. A primeira vez que vi "O Incrível Homem que Derreteu", quando eu tinha uns oito ou nove anos, achei o filme o "maior legal". Tinha um monstro nojento, um monte de mortes, uma intensa perseguição e efeitos especiais massa. Essa era minha percepção. Deparando-me, hoje, com a oportunidade de rever esta produção, percebo que minha credibilidade como crítico-mírim de cinema era, digamos, questionável. Não me interpretem mal: o filme continua muito divertido, mas por motivos inteiramente diferentes dos que eu percebi quando assisti pela primeira vez. Vejamos por que.

O filme se inicia com uma série de borrões de diversas cores e, em seguida, o brilho das estrelas, indicando, sutilmente, o lançamento e viagem de uma espaçonave, a Scorpio 5. Passam-se os créditos do filme, através dos quais descobrimos que a maquiagem (e, provavelmente, toda a despesas do orçamento da produção) ficou por conta de Rick Baker.

Três astronautas deitados em um tosco set "hi-tech", comunicam que estão adentrando "os anéis de Saturno". Um deles: "Ninguém jamais viu algo assim!" e o filme corta para algo que não sei se é uma maquete vagabunda ou stock footage chibunga de um satélite orbitando em torno de algo que parece ser uma superfície cinzenta. O satélite fuleiro é intercalado com cenas dos astronautas apertando botões (essa tal de tecnologia é um negócio fabuloso) e trocando , com a base, mensagens que definem "função fática da linguagem", até que um deles, titular de um bigode digno de ator pornô dos anos 70, não se contém e exclama: "Magnífico! Você nunca viu nada até ver o sol através dos anéis de Saturno!" A empolgação da assertiva destoa da expressão do rapaz, típica de quem precisa urgentemente satisfazer necessidades fisiológicas. Tamanha hipérbole nos deixa aguardando um visual espetacular, mas , ao invés disso, somos fulminados por um firme chute nos testículos: o "sol visto através dos anéis de Saturno" é só uma bola (aliás, uma esfera pela metade) cor-de-laranja opaca, o que nos leva a crer que o astronauta entusiasmado nunca se dedicou muito ao turismo.

Mais uma série de borrões avermelhados de significado dúbio surgem na tela. Presumimos que os borrões significam a aterrissagem da nave em Saturno. Mais alguns borrões ocupam a tela e,
em seguida, o cosmonauta com excesso de entusiasmo é mostrado fazendo caretas, com um filete de sangue escorrendo pelo nariz. São duas as alternativas: ou a aterrissagem não correu às mil maravilhas (nem poderia, afinal, conforme meus exaustivos estudos de astronomia [isto é, dei uma olhada em "Saturno" na wikipedia] 97% do planeta é gasoso) ou a ânsia do rapaz em satisfazer suas necessidades fisiológicas estão ainda mais prementes. Qualquer das hipóteses é prenúncio de desgraça.


Nada é explicitado, pois o filme corta para um quarto de hospital, onde uma enfermeira bem-alimentada e um médico black power verificam a situação de um paciente mumificado por bandagens. o prontuário do paciente está ilegível, exceto por um "RADIATION" em letras garrafais vermelhas. Como minha resenha de "Drácula vs Frankenstein" já demonstrou, meus poderes de dedução são notáveis, de modo que vou adivinhar o que se passa aqui: 1) o paciente é o astronauta outrora empolgado e intestinalmente comprometido, 2) ocorreu algum imprevisto na aterrissagem que resultou no atual quadro clínico e 3) ele é o único sobrevivente. O médico explica que nada está adiantando, que ele nunca viu nada assim antes e que não entende por que ele (o paciente, não o médico) foi o único sobrevivente. É assim que se escreve diálogo expositivo: com três afirmações, uma das quais não guarda qualquer correlação com as anteriores, que explicam tudo o que aconteceu até agora, mas que o orçamento do filme foi insuficiente para mostrar através de imagens. O doutor afirma que precisa chamar Ted Nelson e manda a enfermeira verificar os sinais vitais do rapaz a cada quinze minutos. Cauteloso, o médico acrescenta que "é imperativo que isso permaneça em segredo". É tudo muito misterioso...


Pouco depois de ambos se retirarem, o paciente desperta, se solta e percebe que suas mãos estão cobertas de perebas. Frenético, ele corre para o espelho, tira as bandagens e se desespera ao perceber que está se decompondo... está se derretendo, eu diria. Daí o título. E sim, trata-se mesmo do astronauta com bigode de John Holmes (o qual permanece, apesar de toda a RADIATION, embora tragicamente mutilado pela metade). Está comprovado: eu sou a reencarnação de Sherlock Holmes.


A reação do rapaz não é serena: ele surta e sai quebrando tudo no quarto. A enfermeira tem o péssimo timing de entrar no recinto justamente nesse momento de desabafo e, demonstrando um sadio instinto de preservação, sai correndo. E aqui William Sachs mostra que é um Artista com "A" maiúsculo, brindando-nos com um momento mágico que explica nosso amor ao cinema: a fuga da enfermeira pelo corredor é filmada, sem nenhum motivo minimamente razoável, em câmera lenta, mostrando, de forma fascinante, os efeitos da gravidade sobre tecido adiposo, com gritos incessantes acompanhando a ação, fora de sincronia. E ninguém pode acusar a moça de falta de empenho: diferente do personagem médio de filme de terror, ela não se detém para abrir uma porta de vidro. Não! Como um desenho animado de carne e osso, a moça atravessa a vidraça e continua com sua fuga rua afora, gritando durante todo o tempo (isso que é fôlego!). O Melting Man (vou chamá-lo assim daqui por diante) continua a seguí-la, mas o filme não mostra o desfecho dessa perseguição implacável, deixando-nos imbuídos com a frustração que só um coito interrompido pode igualar.

Corta para uma ambulância a caminho do hospital e Dr. Black Power e o tal Ted Nelson, analisando o cadáver da enfermeira (aparentemente, o excesso de Big Macs consumidos ao longo dos anos foram mais decisivos na fuga do que o empenho da finada). Metade do rosto da moça foi arrancado e o cadáver está impregnado de radiotividade. Nelson, perspicaz, comenta que "ele não devia ter escapado" e Black Power acrescenta, com similar argúcia, que "eles não vão gostar disso". Não sei quem são "eles" (A NASA? Os militares? A família da moça? Ze Germans?), mas tenho certeza de que eles, de fato, não vão gostar disso. A conversa mole prossegue e eles decidem chamar o "General Perry", explicando que "Steve" fugiu, contando toda a história e acrescentando que Steve parece estar "ficando cada vez mais forte" (com base em que, não sei, mas eu não sou um cientista). Paráfrase da reação do general diante de tamanha ameaça: "tratem de encontrar esse porra". E bate o telefone na cara do cidadão. Presume-se que o General Perry não seja um paradigma da aptidão dos militares em lidar com situações emergenciais. Como postulava Aristóteles, puta que o pariu! Um psicopata radioativo matou uma enfermeira e fugiu do hospital e o plano do debilóide é mandar dois cientistas amanezados resolver a situação?

Enquanto isso, Melting Man está vagando por um matagal, grunhindo e deixando um rastro de gosma. O pegajoso encontra um pescador que, como todo personagem de filme de terror vagabundo que se depara com ruídos estranhos em um ambiente ermo, fica perguntando "quem está aí?".

Entrementes, mais conversa mole entre Black Power e Nelson, que comenta que a esposa está grávida , que o pobre Steve deve estar sofrendo muito e que seu cérebro deve estar completamente decomposto, despido de pensamento racional (Caralho! Eu jamais imaginaria essa possibilidade).

Comprovando a exatidão de tal tese, cortamos para a cabeça do pescador sendo jogada no rio.

O General Perry liga para Nelson, informando que está a caminho. A cena é mostrada num "split screen" ridículo, típico de câmeras de video dos anos 80 (aqueles tijolões do tamanho de uma bazuca), com uma barra verde entre as duas cenas.

Mostrando que sabe guardar segredo, Nelson, casualmente, conta a sua esposa toda a história de Steve, sempre com aquela mesma expressão típica de quem está sendo forçado a assistir um espisódio da "Turma do Didi". A cabeça do pescador, por sua vez, continua sua épica jornada rio abaixo, vivendo mil e uma aventuras e vendo coisas que jamais verá novamente, até cair de uma cascata. Uma pirralha que está brincando alegremente nos arredores acaba se deparando com Melting Man (ou "Mel", para os chegados, entendidos estes como pessoas que querem ter menos trabalho ao digitar um crítica), e sai correndo. Sua reação não é exagerada: Mel está cada vez menos formoso.

A pirralha corre por uns dois quilômetros, gritando mais que a porra, até encontrar sua mãe, para quem conta que viu "Frankenstein" no mato. A mãe acalma a pimpolha, dizendo que essas coisas não existem. Nelson, enquanto isso, está por aí, seguindo Mel (com a a ajuda de um contador Geiger e do rastro de carne decomposta deixado pelo monstro) e gritando que quer ajudá-lo, que ele não pode sobreviver sozinho e blábláblá. Tudo isso com aquele entusiasmo de sempre. Francamente, parece que o rapaz está procurando um cachorrinho perdido.

Cortamos para um casal que, aparentemente, está fazendo uma sessão de fotos. O jovem tenta convencer a moça a tirar a roupa para as fotos, levando a crer que ele está usando a "sessão" como desculpa para das uns pegas na beldade. Diante da resistência da jovenzinha, o cidadão resolver apelar para a coação, e, no empurra-empurra, eles acabam descobrindo o corpo decapitado do pescador.

Mas tudo vai ficar bem! Uma fanfarra militar acompanha a chegada triunfal do General Perry no aeroporto, onde encontra Nelson. O General, diga-se de passagem, não trouxe reforços e veio sozinho, usando uma indumentária típica de turista americano no Brasil. Nossas dúvidas sobre o "profissionalismo" desses heróis se agravam cada vez mais. Os dois saem à caçada num jipe amarelo do tempo da onça, constituindo nova evidência de que todo o orçamento do filme foi gasto com o trabalho de maquiagem de Rick Baker. A trilha sonora retumbante, contudo, tenta nos convencer de que momentos de intensa emoção estão por vir.

No meio do caminho, os dois mosqueteiros encontram um carro de polícia e uma ambulância e decidem investigar. É a cena onde foi encontrado o pescador sem cabeça. Nelson, que conhece o Xerife, pede para dar uma verificada no presunto, descobrindo que, além de arrancar a cabeça, Mel ainda brincou um pouco com as tripas do finado. Criativamente, Nelson sugere que se trata de um "ataque de animal selvagem", mas percebe-se pela expressão escrota do xerife que este não está comendo corda.

Experimentemos agora alguns momentos comoventes, enquanto Mel vaga, trôpego, pela mata, lembranças saudosas de sua gloriosa viagem ao espaço ecoando em sua mente. Tempo bom que não volta mais. E uma oportunidade para o filme encher linguiça e aumentar o tempo de duração sem despesas adicionais, reprisando cenas já gravadas.

Enquanto isso, Nelson está dando satisfações à patroa pelo telefone, enquanto Black Power e o General estão, aparentemente, coçando o saco e e resmungando sobre como "perderam a pista do miserável". Observação curiosa, pois, até agora, a única coisa que eles fizeram foi perguntar ao xerife sobre um defunto encontrado. É impressionante a seriedade com que os heróis estão tratando a situação. O General acaba aceitando o convite de Nelson para jantar na casa deste. Também convidados para o jantar estão a sogra de Nelson e um "amigo" desta.

O casal de velhinhos, ao que parece, é o temível comic relief do filme, despertando memórias dolorosas do Jar Jar Binks, do Orlando Jones em "Primeval" e daquele inglês da sobrancelha de taturana da série "A Múmia". Eles estão a caminho do jantar, regurgitando um diálogo insosso que parte da premissa de que nada é mais hilariante do que o romance na terceira idade. Resolvem parar no meio do caminho para roubar uns limões que encontraram na beira da estrada, e o roteiro continua com seu humor debilóide, com a velhinha fazendo exclamações sobre como a lua está linda e como o clima é romântico. Tudo isso ao som de uma trilha digna de um episódio de "Chaves", só que menos divertido. Para nosso alívio, Mel calha de estar nos arredores do limoeiro, ainda mais deformado. Assustados com os latidos de um cachorro, os velhinhos voltam para o carro. Quando eu já estou ficando frustrado, achando que o casal de malas vai escapar e salpicar o resto do filme com momentos de humor... SURPRESA! Melting Man está no banco de trás do carro, mostrando ao casal de idosos que gosta de pregar uma boa peça. A decomposição pode ter destruído seu corpo e sua capacidade de raciocinar, mas não seu senso de humor. Isso sim é que é comic relief.

Alheia a tudo isso, a mulher de Nelson está choramingando sobre suas preocupações com o atraso da mamãe, já que Steve está por aí surtando e tudo mais. O cientista, com o vigor de sempre, assegura que "deve haver uma explicação simples" para o atraso. Mas aflora o conflito: o General Perry escuta a conversa e tenta dar um puxão de orelha no cientista, já que, evidentemente, este deu com a língua nos dentes para a esposa sobre a "crise". O esporro do general sai pela culatra, pois a Sra. Nelson passa na cara dele o teria ocorrido a qualquer pessoa com um mínimo de bom senso: que essa "caça ao monstro" é o troço mais esfarrapado que ela já viu. "O que vocês esperam? Que ele venha bater em nossa porta?" E manda os dois orebas pararem de coçar o saco e continuarem a buscar o monstro. Ambos obedecem, rabos firmemente plantados entre as pernas. Sem, contudo, convocar soldados, a polícia, o FBI nem nada do tipo. É, isso vai dar um resultado da porra. A estratégia da dupla dinâmica continua a mesma: sair dirigindo no jipão amarelo, na esperança de topar com Melting Man por coincidência.

Mais momentos de drama com o pegajoso, que agora está em um cemitério, relembrando a viagem ao espaço.

Mais conversa mole entre Nelson e o General.

Por essa eu não esperava! Melting Man acaba indo parar na casa de Nelson! Ouvindo o barulho de uma vidraça sendo partida, a Sra. Nelson vai investigar e acaba descobrindo que era só a gatinha do casal, que havia derrubado sua tigela de leite. Enquanto a moça limpa a sujeira, um vulto se aproxima por trás e... é Nelson, numa cena de susto das mais originais. Cacete, eu fiquei com o coração na mão!

O xerife encontra o carro dos velhinhos e descobre o serviço do Melting Man. Por motivos inexplicáveis, a primeira atitude do agente da lei é entrar em contato com Nelson (e não, digamos, com o legista ou a polícia científica), corroborando as suspeitas da esposa deste. Nelson deixa a esposa sedada, sob a proteção do general, e vai ao encontro do xerife.

Enquanto isso, sem nenhum motivo o plausível para tal, o xerife ameaça prender Nelson por estar "acobertando o criminoso". Nelson acaba contando toda a história, após obter a promessa de que o xerife (Neil é o nome do cidadão) não conte a ninguém. E lá vão eles continuar a inepta caçada ao monstro.

O general, nesse ínterim, está despreocupadamente batendo um rango na casa de Nelson. Do nada, ele resolve sair, aparentemente para admirar o luar (porra... não dava para criar uma situação mais fácil de engolir? Admirar o luar?), abre a porta e...

Nelson e o xerife resolvem passar na casa do cientista para dar uma verificada no estado da patroa (que, finalmente descobri, se chama Judy) e e encontram o que sobrou de Perry. Mel resolve bater estrategicamente em retirada.

Na próxima cena, um casal de idiotas que está voltando do cinema encontra a porta de casa aberta, a maçaneta coberta por uma meleca avermelhada. Não ganha prêmio nenhum quem adivinhar quem entrou aqui. O cara (Matt, que, veja você, é interpretado por Jonathan Demme) resolve entrar para "investigar" o que está havendo, enquando a mocinha fica esperando do lado de fora. Impaciente com a demora de sua cara-metade, ela resolve entrar, constatando que a casa está completamente revirada e que... bom, o filme não mostra, mas pelo barulho e a reação da moça, é óbvio que ela vê Mel fazendo alguma coisa desagradável com Matt. Ela se tranca na cozinha, barra a porta com a geladeira, liga para a polícia e se arma com um cutelo. Ao que parece, contudo, a decomposição não afetou tanto assim a capacidade de raciocínio do Melting Man, pois, enquanto a moça se prepara o ataque, Mel contorna o obstáculo e ataca pela janela, demonstrando, mais uma vez, que é praticamente um ninja.

A mocinha (Nell), contudo, não entrega os pontos e acerta um golpe de cutelo no braço de Mel, decepando o membro de infeliz monstro em decomposição.


Melting Man foge e Nell passa uns vinte segundos dando um faniquito. Um retrato realista dos efeitos do stress pós-traumático ou só mais uma maneira de prolongar artificialmente a duração do filme? Você decide.

Informado do pedido de socorro de Nell, o xerife parte em busca do monstro. Enquanto os dois manés chegam na casa da moça, o monstro já partiu para outra vizinhança, deixando atrás de si um rastro de gosma, que é seguido por nossos heróis. A perseguição frenética (leia-se, tranquila caminhada pela linha de trem, seguindo a meleca), conduz os dois a Melting Man, que está chegando numa fábrica ou refinaria... sei lá, uma estrutura industrial. O xerife saca sua arma, mas Nelson, em mais um momento sem noção do roteiro, o impede de dar cabo do monstro. O xerife dá um tiro para cima; Melting Man, mostrando que não é otário, pica a mula fábrica adentro. Após uma caçada das menos intensas (é sério, parece uma brincadeira de esconde-esconde), Nelson, mais uma vez sem nenhuma base (e isso que o sujeito é um cientista) deduz que "ele parece estar ficando mais forte à medida que derrete! Temos que descobrir por que!". Num plano nada manjado, os dois resolvem se separar para efetuar a busca com mais eficiência (ou seja, um dos dois vai ser encurralado pelo monstro e morrer). Nelson, sabe-se lá por que, joga sua arma fora. Já desisti de entender as motivações do sujeito. A partir de agora, vou partir da premissa de que ele simplesmente é imbecil e pronto.

Finalmente, após vários closes de pés subindos escadarias, os dois heróis encurralam o monstro no topo de uma torre. Inacreditavelmente, o xerife, que está com uma espingarda apontada para Melting Man, ao invés de fazer o óbvio (disparar vários tirambaços na cabeça do bicho), fica perguntando a Nelson o que fazer. Quando o monstro finalmente parte para cima dele, o retardado resolve disparar, mas aí o barco já zarpou: apesar de baleado, o monstro agarra Neil. Enquanto o pau come, Nelson se limita a ficar choramingando, sem muita convicção: "Steve, pare. Já chega." (Só faltou ele dizer, "deixa disso, os cara") até que Melting Man acaba jogando o xerife da torre. O infeliz homem da lei calha de cair sobre um monte de fios de alta tensão, resultando numa morte literalmente pirotécnica.

Dois vigilantes da fábrica, que, numa cena anterior que não mencionei, encontraram rastros da gosma de Melting Man, se aproximam da torre.

Nelson, confrontado por Mel, tenta argumentar com o monstro, com previsível sucesso (Mel joga o rapaz por cima de um dos corrimões da torre). Segurando-se no corrimão, Nelson tenta apelar para o sentimentalismo, gritando reiteradamente que "Steve! Sou eu! Ted Nelson! Se u amigo! Eu estou caindo! Me ajude! Eu faço um boquete!" Certo, a última eu inventei. E, num comovente momento que vai trazer lágrimas aos olhos do espectador, Melting Man, demonstrando que ainda resta algo de sua humanidade no âmago de seu aspecto horripilante, acaba salvando o zeba.

Tragicamente, os vigilantes chegam à torre no momento em que o dramático resgate está ocorrendo. A despeito dos apelos de Nelson, eles acabam abrindo fogo e matando o cientista, mas não o monstro, que dá cabo dos dois. Ok, eu admito que essa foi realmente surpreendente. Tenho certeza que, na cabeça do diretor, foi uma tentativa retardada de passar alguma mensagem pacifista, mas a morte casual do "herói" foi supreendente mesmo assim.

Melting Man sai da fábrica cambaleando e se derretendo cada vez mais, lembranças da viagem a Saturno e daquele singular e perfeito momento em que ele viu o sol "como ninguém jamais o havia visto", ressonando em sua mente, até se derreter completamente. Bem, pode-se acusar o filme de tudo, menos de publicidade enganosa.

Enquanto cenas das consequências nefastas da viagem anterior se passam (Nelson morto na escadaria, os seguranças, o xerife eletrocutado), ouvimos uma jornalista anunciando o lançamento de mais uma nave em missão a Saturno, e o filme se encerra com stock footage de um foguete sendo lançado e de mais cenas cenas de borrões multicoloridos, intercalados com as imagens de um zelador jogado a meleca que restou do Melting Man numa lixeira.

Tudo bem, talvez eu não fosse uma criança tão idiota. O filme certamente é uma porcaria, mas não deixa de ser divertido. O elenco é uniformemente péssimo, a fotografia é do nível de uma novela da globo e a "estratégia" dos heróis para capturar o monstro é completamente ridícula (Cadê o exército? O Perry não é general? E o resto da polícia?) deixando claro que minha tese sobre a destinação do orçamento não era piada. O roteiro era praticamente inexistente - basicamente, pode ser resumido como "cara vai ao espaço, vira monstro, sai matando umas pessoas aleatoriamente, é seguido por um cientista, um general e um xerife e acaba se derretendo no final". Mas a maquiagem da criatura é muito boa e extremamente asquerosa (claro, todo o dinheiro do filme foi pro bolso do Rick Baker), os diálogos são de uma ruindade sublime (mais artificiais que o Leão Lobo tentando seduzir a Juliana Paes), os dois velhinhos "cômicos" viram comida de monstro e o final é genuinamente desagradável, com aquele clima de "shit happens" que permeava o cinema de horror dos anos 70. E, claro, temos três momentos mágicos, cuja beleza não pode ser descrita em meras palavras. Senhoras e senhores, contemplem o esplendor de "Enfermeira em Fuga", "Cabeça à Deriva" e "O Incrível Xerife que Explodiu".







sexta-feira, 24 de abril de 2009

Whip and the Body/La Frustra e Il Corpo


"La Frusta e il Corpo/The Whip and the Body" é, em minha opinião, o melhor horror gótico de Mario Bava. Infelizmente, é também uma das obras menos vistas do diretor e um dos motivos pelos quais me irrita profundamente a "crítica profissional" de cinema. Quando Buñuel ou Polanski tratam de temas como distúrbios psicossexuais, a crítica se derrete e louva os cineastas como "transgressores" e "visionários". Quando Mario Bava dirige uma história de fantasmas magnificamente fotograda e com um brilhante roteiro que aborda temas semelhantes, é tratado como um velho depravado, o filme é censurado em todo canto, mutilado pelos distribuidores até se tornar irreconhecível quando comparado à visão original do diretor, e são necessários quase quarenta anos para que a obra seja restaurada (graças, principalmente, aos esforços de Tim Lucas e Joe Dante) e possa ser apreciada da maneira que o saudoso mestre a concebeu.

A trama se inicia com o retorno de Kurt Menliff (Christopher Lee) ao castelo de sua família. A chegada do cidadão suscita um turbilhão de sentimentos dignos de uma novela mexicana. Kurt, conforme vai revelando a história, foi exilado por seu pai, em razão de seu caráter duvidoso: anos atrás, o rapaz seduziu Tanya, filha adolescente da criada Georgia (Harriet Medin) e, depois de se divertir com a ingênua manceba, abandonou-a, levando-a ao suicídio. Georgia, compreensivelmente, até hoje não engoliu essa sacanagem e guarda como uma jóia o punhal com que sua filha se matou, jurando que um dia a arma será o instrumento da morte de Kurt.

Outro motivo que torna o retorno do primogênito dos Menliff inconveniente é o fato de seu irmão, Christian (Luciano Stella, mais conhecido como Tony Kendall) estar casado com Nevenka (a espetacular beldade israelense Daliah Lavi), antiga amante de Kurt. Tal casamento, para tornar a situação ainda mais desconfortável, não foi fruto da livre e espontânea vontade do casal, mas imposição do Conde Menliff, patriarca do clã (Gustavo de Nardo). A verdadeira paixão de Christian é sua prima, Katia (Ida Galli), que também vive no castelo. Todas as famílias felizes são parecidas...


Kurt, diga-se, é realmente um escroto de proporções épicas. O cidadão é um dos melhores vilões interpretados por Christopher Lee, exalando arrogância e ostentando desprezo por praticamente todos os outros personagens da trama, sob uma sutil fachada de elegância. Alegando ter voltado para parabenizar o irmão pelo seu casamento e pedir perdão ao pai pelas transgressões passadas, o que o rapaz realmente quer é a restauração de seu título, de sua primazia na descendência da linhagem e de seus bens, dos quais foi destituído quando do exílio imposto por seu pai após a "indiscrição" com a filha da criada. Tais pretensões são reveladas quando Kurt adentra o quarto de seu pai enfermo através por uma passagem secreta na lareira do aposento (artifício também presente no clássico "Black Sunday", do diretor), levando imediatamente um chega-pra-lá do velho, o que muito irrita o filho pródigo.

E, claro, o rapaz também quer Nevenka, cuja perda para o irmão ele nunca engoliu.

O que conduz à primeira cena que provocará uma reação "Puta que o pariu! Isso é inacreditável!": Nevenka está fazendo um idílico passeio de cavalo pela praia, abaixo do cume onde fica o castelo. Fazendo uma pausa para relaxar, a beldade traça desenhos na areia com o chicote do cavalo, quando, subitamente...

Kurt entra em cena, fala sobre os velhos tempos e tenta dar uns malhos na moça, que, após ceder por alguns instantes, se esquiva e acerta tenta acertar uma chicotada no rapaz. Este não se dá por vencido e, tomando o chicote, acerta uma pancada na moça, que, acuada, recua até tropeçar e cair. E Kurt, exclamando, "Você não mudou. Você sempre adorou violência.", procede a desferir uma série de golpes de chicote nas costas da moça. Ao que parece, Kurt sabe do que estava falando, pois Nevenka solta uma série de gemidos enquanto está sendo açoitada, mas não parecem ser exatamente gemidos de dor...

Finda a sessão de chicotadas, Nevenka olha seu algoz com uma expressão de "vem pra mim"; sem hesitar, Kurt larga o chicote, quando o casal parte para o sexy-time... fade to black. Isso mesmo, colegas. O que temos aqui é uma autêntica e explícita cena de S&M, filmada em 1963. E foi principalmente isso que levou o filme a ser editado até se tornar, em certas versões, ininteligível.

Quando cai a noite e Nevenka ainda não retornou de seu passeio, Christian está nervoso e preparando-se para iniciar uma busca pela sua consorte. Kurt chega alegre e despreocupado (claro, o cara acabou de dar umas pegas em Daliah Lavi), fazendo pouco da preocupação do corno, debochando da criada cujo suicídio da filha ele, indiretamente, provocou e zombando do amor reprimido entre Christian e sua prima Katia. O cidadão sobe para o seu quarto e prepara-se para dar uma relaxada, quando uma voz fantasmagórica, cortando o som da ventania que entra pela janela, começa a chamar seu nome. Perquirindo seus arredores em busca da origem da voz, Kurt é atacado por alguém que finca o punhal que matou Tanya em sua garganta...

Nevenka é finalmente encontrada pelo mordomo, Losat, ainda na praia, aparentemente levada à inconsciência pela sessão de amor violento com Kurt. Todos retornam ao castelo, onde descobrem o recente presunto. Quem terá sido o assassino? Christian, que estava desacompanhado durante a busca por Nevenka, talvez porque teria descoberto o par de chifres que foi recentemente afixado em sua testa? Georgia, a fim de justiçar a morte de sua filha? O velho Conde Menliff, que evidentemente detestava seu filho canalha e era a única pessoa que ficou no castelo com Kurt, a fim de "lavar a honra da família"? A própria Nevenka, cujo fetiche sexual reprimido (e que, no contexto histórico, certamente era fruto de intensa vergonha para a moça) foi forçosamente despertado por seu amante? Losat, que é mais esquisito que uma nota de três reais (e é interpretado por Luciano Pigozzi, o "Peter Lorre" italiano)? Katia, a quem Kurt tinha prazer de torturar psicologicamente, lembrando-lhe de sua paixão frustrada por Christian? Todas essas suspeitas já renderiam um interessante (embora convencional) mistério. Mas surge mais uma indagação:

Estaria Kurt Menliff, de fato, morto?

Pois, após o sepultamento do rapaz (e a cerimônia é pra lá de estranha: embora pareça se tratar de um velório cristão ortodoxo, o caixão é carregado por uns caras trajando o que só pode ser descrito como uma versão vermelha dos trajes da KKK), estranhos incidentes começam a ocorrer.


Tocando piano, Nevenka vislumbra Kurt na janela, fitando-a impiedosamente.


Depois, é despertada, na calada da noite, por um barulho que se assemelha ao estalar de chicotadas. Esgueirando-se pelos corredores sombrios do castelo, a beldade descobre que se tratava apenas do barulho de um galho sendo golpeado pela força do vento, contra uma das janelas.

Mais tarde, porém, em seu quarto, ela se depara com Kurt, um lenço ensanguentado cobrindo o ferimento em sua garganta (um espectro ou Kurt fingindo ser um espectro?), que está prestes a atacá-la, quando os gritos da moça atraem Christian (sim, o mané é casado com Daliah Lavi, mas dorme em outro quarto), provocando o desaparecimento da aparição e levando à conclusão de que tudo não passou de uma alucinação.

Posteriormente, Nevenka é novamente assombrada por Kurt, e, dessa vez, o ocorrido não pode ser atribuído a alucinações, pois o ataque (se é que se pode se chamar de ataque; após superar o medo, a reação da moça conduz a uma cena muito semelhante à ocorrida na praia) deixa visíveis marcas de chicote nas costas da jovem.

E então o Conde aparece assassinado, sua garganta cortada. Para tornar o homicídio ainda mais tétrico, o punhal que provocou a morte de Kurt, e que havia sido guardado, desaparece, levando à conclusão de que a mesma arma foi usada no crime e reforçando a suspeita de que Kurt talvez tenha a simulado a própria morte e, agora, esteja em busca de sua parte do patrimônio da família.

Não vou adiantar mais detalhes sobre a trama porque trata-se de um mistério cuja resolução realmente surpreende e faz sentido, dando uma conclusão genuinamente satisfatória à história (diferente, por exemplo, de todas as "reviravoltas" dos filmes de M. Night Shyamalam desde Corpo Fechado).

Ademais, tão relevante quanto a trama é técnica de Bava na direção. Como tentei demonstrar através de excesso de fotos ao longo do artigo, todas as cenas do filme são compostas de forma a criar um denso clima gótico. A fotografia do filme, com o perdão da boiolagem, é deslumbrante. Cada cena parece uma pintura em movimento e a maneira como o maestro utiliza cores e sombras para criar atmosfera e refletir o estado emocional dos personagens faz produções caras e suntuosas da época parecerem ter sido fotografados com a perícia dos filmes direct-to-video de hoje em dia. Exemplos marcantes disso são a primeira vez em que Nevenka percorre os corredores do castelo, ouvindo o que pensa ser estalar de chicotes, bem como a visita desta ao túmulo de Kurt, onde, após ouvir ouvir um ruído, suspeita estar diante de uma manifestação sobrenatural, deparando-se com marcas enlameadas das botas do falecido no chão.

Sou fã das produções da Hammer e dos filmes de Poe do Corman, mas, francamente, nenhum deles chega aos pés, em termos de opulência visual, a Whip and the Body.

Detalhe que deve ser abordado, ainda, é que o filme é um genuíno romance gótico. A relação sadomasoquista entre Menliff e Nevenka pode parecer, superficialmente, uma perversão, mas é inegável que há genuíno feeling além das chibatadas, que são, releva mencionar, sempre acompanhadas pelo belo tema romântico de Carlo Rustichelli. É patente que Kurt sente uma frustração mal disfarçada por ter perdido Nevenka para o irmão; igualmente evidente é que esta é apaixonada pelo vilão - e assim continua após a morte deste. As cenas em que a protagonista é açoitada por Menliff (tanto antes quanto após a morte deste) em momento algum o retratam como um vilão ou esta como uma vítima: é óbvio que a situação é sexualmente gratificante para ambas as partes. Kurt é o vilão da história não em razão de sua relação com Nevenka, mas em virtude de ser frio, cruel (como é demonstrado em suas interações com todos os demais personagens) e ganancioso (fica claro que sua principal motivação ao retornar ao lar é reaver seu título e sua parte no patrimônio da família). A aparente repulsa que a protagonista sente por ele é, na verdade, uma sublimação do sentimento de culpa causado por sua sexualidade "desviante" e reprimida. É tal repressão, na verdade (e SPOILERS daqui em diante, para quem não quer saber detalhes sobre o desfecho da trama) que desencadeia a série de desgraças que se abatem sobre a família Menliff. Neste contexto, o final trágico, é, paradoxalmente, feliz - Nevenka finalmente aceita lidar com os fatos e é, de certo modo, reunida com seu amante.

Deixemos, porém, masturbações intelectuais de lado e vamos direto ao ponto: este filme é do caralho. Funciona como filme de terror sobrenatural (além das aparições e assassinatos, temos catacumbas sinistras, exumações, passagens secretas e tudo mais que faz a alegria dos fãs do cinema de terror macarrônico da década de 60) e funciona como romance gótico. Christopher Lee está excelente como o vilão (apesar de sua voz estar dublada) e Daliah Lavi é um motivo válido para tomar partido dos israelenses nos conflitos no Oriente Médio. É o tipo de filme que Francis Coppola queria fazer (e não conseguiu) com "Drácula de Bram Stoker". Assista a esse filme. Creio que, a rigor, a obra está no domínio público e pode ser facilmente obtida via P2P, mas, sinceramente, não recomendo - você corre risco de baixar uma das horríveis cópias mutiladas que foram lançadas no EUA e em parte da Europa (sem as cenas de S&M). Sugiro desmbolsar um extra e importar o DVD da VCI, que, além de conter uma versão uncut do filme, com qualidade impecável, inclui, ainda, uma excelente faixa de comentário de Tim Lucas, obrigatória para qualquer fã de Bava ou do cinema de horror italiano do período.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Só para não passar em branco...

Ficou tosco, mas eu tinha que deixar algum registro em homenagem ao gratificante quebra-pau entre os ministros do STF Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa:

segunda-feira, 20 de abril de 2009

"Drácula de Bram Stoker"? Está mais para "Drácula de Anne Rice".

Versão curta: Eu odeio esse filme.

É muito fácil sentar o pau numa podreira de Al Adamson, feita nas coxas, com um orçamento de dez dólares, um roteiro escrito numa mesa de bar, maquiagem e efeitos especiais que até meu sobrinho de quatro anos consegue fazer e a óbvia intenção de faturar dinheiro fácil. Já este filme tem um elenco classe A (tudo bem, tem também o Keanu Reeves e a Winona Ryder, mas vá lá), um orçamento que, à época, era o mais alto da história para um filme de vampiros, o diretor de “O Poderoso Chefão” e “Apocalypse Now” e, supostamente, a intenção de ser “a mais fiel adaptação da obra de Bram Stoker”. O resultado: um aborto cinematográfico.

Eu sei que esse “Drácula de Bram Stoker” é, em geral, respeitado pela crítica, tem uma legião de admiradores e é visto como uma “das mais fiéis adaptações do clássico de horror”, mas que se fodam. Eles não sabem do que estão falando. Minha teoria é que os fãs desta “obra” se deslumbraram com a bela fotografia, os cenários suntuosos e a excelente trilha sonora do filme e deixaram de prestar atenção ao resto. Ou é gente que tem ojeriza a filme de terror, mas gostou desta porcaria porque achou a obra “romântica” e imbuída de “qualidade artística”. Tenho que ser justo com as virtudes do filme. O visual é espetacular. A trilha sonora é de primeira. Tom Waits, lembrando um Boris Karloff entupido de cafeína, dá uma das melhores interpretações cinematográficas de Renfield, embora o personagem seja supérfluo. Sadie Frost é gostosa e passa boa parte do filme tentando tirar a roupa. Monica Bellucci aparece com os seios de fora. E é só. Excetuados esses raros momentos de alento, eu compararia esse filme a uma bosta folheada a ouro e cravejada de diamantes: pode até parecer bonita, mas não deixa de ser excremento.


A melhor maneira de sintetizar o espírito filme é parafraseando Ken Begg, do jabootu.net, em sua crítica de “Prophecy”, de John Frankenheimer. Segundo Begg, esse é o tipo de palhaçada que costuma acontecer quando se tenta colocar um diretor “de prestígio” para fazer um filme de terror. O artista acaba concluindo que tal tarefa não está à altura de seus talentos – afinal, “qualquer idiota sabe dar susto” – e resolve fazer algo “mais ambicioso”. É como pedir a um chef de cuisine para fazer um cheeseburger com fritas. Achando que tal tarefa seria um desperdício de suas habilidades, ele não se contenta em simplesmente atender a seu pedido. Não! Ele decide fazer uma genuína obra de arte culinária e, quando finalmente tal obra é colocada diante do cliente, que queria apenas um lanche rápido, este, ao invés de se desmanchar em orgasmos gastronômicos, como esperava o autor da iguaria, limita-se a fitar o prato, com uma expressão de incompreensão, indagando “que porra é essa?”. E acaba indo pedir um sanduba gorduroso no boteco da esquina, onde pelo menos o pessoal sabe o que você quer.


Deixemos uma coisa bem clara: eu não sou purista em relação a adaptações, nem faço objeção a um filme ambicioso que tenta transcender as limitações da obra em que se inspira. “O Poderoso Chefão” é uma obra-prima que supera, consideravelmente, o livro em que se baseia. “O Iluminado”, de Kubrick, tem apenas uma vaga e superficial semelhança com o livro de Stephen King e, em minha opinião, é um dos melhores filmes de terror de todos os tempos. “Tubarão” é um excelente filme que tem quase nada em comum com o livreco tosco em teria se baseado. Até “Do Inferno”, que é, sem dúvida, uma PÉSSIMA adaptação da brilhante obra de Alan Moore e parte de uma premissa completamente oposta ao material em que alega se inspirar, pelo menos não tenta debochar de sua inspiração e funciona como um filme de suspense e terror.


O “Drácula” de Coppola, entretanto, nada tem em comum com os filmes supracitados. A atitude do diretor e do roteirista em relação à obra original é evidente: total desdém. Não se trata de uma situação em que eles leram o livro de Stoker (que é um clássico altamente influente e, em minha opinião, funciona como bom entretenimento, mas está longe de ser uma obra-prima) e pensaram: “essa história é interessante, mas a gente pode aperfeiçoá-la”. A atitude dos responsáveis por esta bomba em relação ao livro é “Poupe-me! Isso é uma porcaria. É uma velharia antiquada que ninguém mais lê, fruto de uma era ultrapassada cheia de pudores e machismo. Pra que adaptar essa bobagem, quando podemos fazer coisa muito melhor? Podemos modernizá-la! Adequá-la a nossas sensibilidades progressistas, à nossa visão de mundo sofisticada!” Porque, claro, Hollywood acha que é a epítome do pensamento progressista e da sofisticação. Ninguém tem uma visão de mundo mais sofisticada que aquela Meca do cinema. Eles são a vanguarda. E, por falar nisso, quantos blockbusters Hollywoodianos incluem, com naturalidade, um relacionamento amoroso interracial? Quero dizer, filmes que contenham um romance interracial e que não girem em torno dos conflitos gerados pelas “discrepâncias raciais” dos pombinhos? Will Smith e Eva Mendes em “Hitch” não conta. Eva Mendes, na ótica politicamente correta de Hollywood, não é branca; é “hispânica”. Só comentando. Quantas vezes alguém viu Denzel Washington fazer par romântico com uma atriz branca? “Progressista” é o caralho.


E assim, desprezando a idéia de fazer um “mero filme de terror”, Coppola e o roteirista Jim Hart decidem “reinventar” a obra, transformando-a num “romance gótico”, numa “meditação sobre a imortalidade e os desígnios misteriosos de Deus, a perda de fé e o poder redentor do amor”. Em resumo, quiseram fazer tudo, menos um filme de terror. Só que tiveram que colocar vampiros, porque, infelizmente, não dá pra contornar o fato de que um filme chamado “Drácula” tem que ter vampiros na história. Mas, como ninguém é de ferro, saíram divulgando que fizeram “a mais fiel adaptação da obra de Bram Stoker”. E um bando de manés acreditou e saiu repetindo.


Como é notório, não é por esse motivo (a suposta “fidelidade” ao material em que se baseia) que o filme se chama “Drácula de Bram Stoker”. É porque a Universal, inacreditavelmente, e não obstante ambas as obras já estejam no domínio público, afirma ser titular dos direitos autorais dos títulos “Drácula” e “Frankenstein”. Na lógica irretocável do estúdio, você pode colocar a palavra “Drácula” no título, desde que acompanhada de qualquer outra palavra. Mas só “Drácula” não pode. É deles.


Enfim, essa é a mais fiel adaptação do livro de Stoker. A única diferença é que Drácula, no livro, era, indubitavelmente, o vilão. E não era um vilão psicologicamente complexo. Era o Mal absoluto (com “M” maiúsculo), um predador implacável que via os humanos somente como alimento ou, no máximo, como objeto de diversão sádica. Um monstro que seqüestra bebês para servi-los às vampiras que vivem em seu castelo. O único interesse dele, ao se mudar para Londres, é ter abundância de alimento e disseminar o vampirismo. O livro é extremamente maniqueísta. Aqui, ele é um “anti-herói romântico”, que vai a Londres em busca da reencarnação de seu amor perdido. Fica patente a fidelidade à obra original.


Começamos com um prólogo “inovador”, que não está no livro e consiste numa distorção de um história sobre o voivoda romeno Vlad, o Empalador. Costuma-se pensar que Vlad, também conhecido como Drácula, serviu de inspiração ao vampiro de Stoker. Não serviu: Stoker já tinha seu livro bem delineado (o nome do vampiro seria, sutilmente, “Conde Wampyr”) quando leu sobre Drácula, gostou do nome, pegou alguns fatos históricos aleatórios e colocou nos diálogos do personagem, para dar mais verossimilhança à história. E só. Enfim, no prólogo, Vlad, que é um cristão devoto (na vida real, não era; ele basicamente contava com o apoio da Igreja Ortodoxa porque era politicamente conveniente; posteriormente, também por conveniência política, se converteu ao catolicismo), vai combater os turcos otomanos em nome do cristianismo e ganha a batalha. Os turcos, só de sacanagem, lançam um flecha seu castelo, carregando um bilhete segundo o qual Vlad tombou em batalha. Elisabetha, a esposa do príncipe, decide que a vida não fez sentido sem seu amado e se joga das torres do castelo (na esperança de ser “reunida com seu Príncipe no céu”, se esborrachando no chão (mas deixando um cadáver perfeitamente intacto, salvo um filete de sangue que escorre do canto da boca). Drácula, quando chega em casa e é informado do ocorrido, fica totalmente puto com o senso de humor escroto de Deus, renuncia a sua fé e mete uma espadada numa cruz. Uma cachoeira de sangue começa a escorrer da cruz, Drácula bebe o sangue e BAM! Pronto, virou vampiro, só pra passar a eternidade sacaneando Deus.


Não sou cristão, mas tenho que questionar a inteligência de Elisabetha e o bom senso de Vlad nessa cena. Em primeiro lugar, como diabos cometer suicídio a faria “se reunir com seu amado no céu”? Que eu saiba, em qualquer vertente do cristianismo, suicídio leva ao inferno. Pelo que eu sei, no espiritismo, o suicídio também não é um caminho para a felicidade. Não vou me deter pesquisando a posição de outras religiões sobre o suicídio, pois o roteiro segue uma teologia (se é que se pode falar nisso) cristã. Então, Vlad não devia se revoltar com Deus, mas com a burrice de sua amada, que, nas circunstâncias, tomou a decisão mais retardada possível. Além disso, desde quando blasfemar e fincar uma espada numa cruz é o caminho para se tornar um morto-vivo (condição que o filme, claro, pinta como o cúmulo do sofrimento, mas que, em minha opinião, seria massa)? Blasfêmias muito piores já foram cometidas ao longo da história e nem por isso há vampiros saindo pelo ladrão por aí. Eu mesmo já blasfemei uma porrada de vezes e até agora, nada de imortalidade e superpoderes. Vi esse filme pela primeira vez quando era pirralho. Inspirado, tentei apunhalar uma cruz e nada. É verdade que era só um crucifixo de madeira e eu usei um canivete suíço, de modo que o problema, talvez, tenha sido minha falta de ambição, mas acho improvável. Nem a pau vou entrar numa Igreja com uma espada e correr o risco de levar um baculejo da polícia pra tirar a dúvida.


Enfim, 400 anos mais tarde, Jonathan Harker vai ao Castelo Drácula vender uma casa ao conde. Lá chegando, pouco a pouco começa a desconfiar que há algo de errado com seu anfitrião, até, gradualmente, descobrir que este não é um ser humano normal, mas uma criatura da noite. Quer dizer, no livro é assim, pois Stoker descreve Drácula como um ancião que, superficialmente, parece ser normal, até você prestar atenção em certos detalhes, que, à primeira vista, passam despercebidos - tais como o fato de ele ter dentes mais afiados que a regra, orelhas levemente pontiagudas, unhas afiadas, palidez cadavérica, um perpétuo mau hálito, além de nunca aparecer durante o dia e, pelo menos diante de Harker, nunca comer. Já o Drácula de Coppola...


Puta que o pariu! Tenha santa paciência! Que porra é essa? Qual é o propósito dessa palhaçada toda? Em que universo um aristocrata eslavo de século XIX se veste desse jeito? Basicamente, a costume designer Eiko Ishioka decidiu adotar um estilo “teatro Kabuki”. Essa decisão foi inspirada por suas origens nipônicas. E daí? Isso não é justificativa. Eu sou nordestino. Seguindo essa lógica, se eu fosse o figurinista do filme, Drácula apareceria com trajes de cangaceiro. Isso faz sentido? Poupe-me. E o que mais me irrita é que praticamente todo crítico que resenha o filme finge que não achou esse negócio risível. Sempre se fala sobre como a maquiagem e o figurino conferem um aspecto “antinatural” ao vampiro, realçando sua dissociação da humanidade. Não, não é esse o efeito que o aspecto do Drácula de Coppola provoca. O efeito que ele provoca é vontade de rir e fulmina totalmente a imersão do espectador no filme – é óbvio que se trata de um cara coberto de maquiagem pesada e usando uma peruca bisonha e um quimono berrante. E o pior de tudo é que, como o “Drácula velho”, a interpretação de Gary Oldman seria bastante convincente, se não fosse totalmente anulada por esse aspecto de destaque de escola de samba. Podiam muito bem ter chamado o Ney Matogrosso da era “Secos e Molhados” para interpretar o conde. Seria igualmente eficiente.


Em síntese: em momento algum dá pra acreditar que Harker, conservador jurista vitoriano, conseguiria levar a sério esse traveco Kabuki. Mesmo um Harker interpretado por Keanu Reeves, que é tão verossímil como um advogado inglês do século XIX quanto John Wayne como Genghis Khan. Nem vou me dar ao trabalho de esculachar a interpretação do Keanu, porque isso é bater em cachorro morto – até os fãs do filme acham a interpretação do rapaz uma porcaria; até Coppola lamenta a escolha do ator.


Enfim, Harker chega ao Castelo Drácula, vende a casa e derruba um retrato de sua noiva, Mina. Drácula vê o retrato e constata que a moça é idêntica à sua finada esposa. Aflora o sentimento. Keanu vaga pelo castelo, é atacado pelas três “noivas” do vampiro, Monica Bellucci mostra todo seu talento (ÊBA!). Drácula aparece para estragar o oba-oba, entrega um bebê para saciar, temporariamente, a sede de sangue de suas companheiras, e Harker surta geral, mostrando toda a pujança dramática de Keanu Reeves, numa cena hilária.


A fim de se livrar da concorrência, Drácula decide deixar Harker preso em seu castelo, com suas três companheiras vampiras, e parte para Londres em busca do amor.

Em Londres, encontramos Mina (Winona Ryder, pouco mais convincente que o Keanu, mas só “pouco”) e sua gostosa amiga Lucy Westenra. Lucy está deslumbrada porque recebeu três pedidos de casamento. Os pretendentes são Arthur Holmwood, um aristocrata boçal; Jack Seward, médico nerd dono de um manicômio, e Quincy Morris, texano inspirado no Marlboro Man. Tudo bem que Lucy é gostosa, mas eu admiro a bravura de um homem que tenha coragem de pedi-la em casamento. Já vi prostitutas de beira de esquina se portando com mais decoro que a personagem. O roteirista tenta retratar Lucy como uma jovem audaciosa e independente para seu tempo, mas ela acaba saindo como uma ninfomaníaca psicótica, prestes a ter um orgasmo a cada cinco segundos e falando em sexo o tempo todo. A Dercy Gonçalves era mais recatada que essa moça. Vale lembrar que a Lucy do livro nada tem de audaciosa ou independente. Ela é, basicamente, uma chapeuzinho vermelho. A moça é tão sensível que acaba se entristecendo com os três pedidos de casamento, pois, inevitavelmente, terá que “partir o coração” de dois dos pretendentes, que são todos rapazes do mais elevado caráter. Mas tudo bem, dá pra entender que o roteirista queira dar uma personalidade mais distinta à personagem (mesmo porque Stoker é péssimo na caracterização). Agora, fazer uma personagem do século XIX se comportar de uma maneira que seria considerada escandalosa nos dias de hoje é uma idéia simplesmente asinina.


Bom, como no livro, o navio que traz Drácula e seus caixões chega na Inglaterra com toda tripulação morta, mas parece que ninguém dá muita atenção a isso. O vampiro parte logo para o vamos ver e, transformado em lobisomem, procura sua primeira vítima, que calha de ser Lucy. Usando seus superpoderes, o vampiro a atrai para um cemitério e manda ver com a moça, antes de mordê-la. Sim, o Drácula-lobisomem come a mocinha antes de mordê-la. É interessante que o filme passe o tempo todo fazendo aquela surrada abordagem do vampirismo como uma metáfora para a sexualidade. O problema é que a metáfora meio que perde o propósito quando os personagens estão literalmente fazendo sexo. Parabéns pela sutileza, Francis Ford Coppola.


Blábláblá, Lucy fica doente, Seward não consegue identificar a causa e chama seu velho mentor, Professor Abraham Van Helsing, especialista em doenças obscuras. Van Helsing é interpretado por Anthony Hopkins, que, por breves instantes, passa a impressão que vai emprestar ao filme uma bem-vinda dignidade. Mera ilusão. Francamente, acho que o Van Helsing do livro é um personagem meio ridículo. A primeira vez que li uma versão em inglês de “Drácula”, tive muita dificuldade em entender os diálogos do Van Helsing. O homem mal consegue conjugar um verbo e, francamente, é muito difícil levá-lo a sério como um acadêmico de renome. A interpretação cinematográfica do personagem mais fiel ao livro é o Mel Brooks em “Drácula: Morto, Mas Feliz”. Seria perfeitamente compreensível que alterassem o personagem para torná-lo menos caricato – foi o que Peter Cushing e Frank Finlay fizeram. Mas Hopkins prefere seguir outra direção: seu Van Helsing consegue, sim conjugar verbos corretamente e usar artigos, mas passa o filme todo se comportando como um bufão, soltando piadinhas sem graça e grosserias, passa uma cantada em Mina e, num momento “humorístico” que acaba por fulminar toda a dignidade que ainda restava ao personagem, encoxa Quincy Morris.


Como de praxe, Van Helsing faz algumas transfusões de sangue, solta pistas enigmáticas sobre a origem da “doença” e enrola até revelar que suspeita de que Lucy seja vítima de um vampiro, para a incredulidade de Seward, Holmwood e Morris.


Entrementes, o bom conde encontra Mina, confirmando que esta é a reencarnação de seu amor perdido. Após uma série de episódios que, numa ótica “moderna” (convenientemente deixada de lado, por ora, pelo filme), só posso descrever como assédio sexual dos mais inconvenientes, a moça acaba sucumbindo ao chamado de suas vidas passadas e se entrega aos encantos do exótico estrangeiro:


Algumas observações sobre toda a baboseira do “amor reencarnado”, que muitos apregoam ser a “inovação” do filme em relação à livro. Basicamente, não é. James Hart plagiou a idéia do roteiro do “Drácula” de Dan Curtis, de 1973, escrito por Richard Matheson (um romancista e roteirista de terror e sci-fi que tem mais talento no nariz do que Hart tem na família). A idéia de um monstro atraído por uma mulher que é a reencarnação de seu amor do passado, aliás, está presente na imensa maioria dos filmes de múmia (desde o clássico de 1932, com Karloff). A visão de Drácula como um personagem imbuído de sex appeal é bastante comum no cinema (em agudo contraste com o livro, que pinta o Conde como uma criatura, na melhor das circunstâncias, sinistra e, na pior, absolutamente asquerosa) e a inversão de papéis, convertendo o vilão em anti-herói romântico, já foi feita (com resultado muito superior, creio eu) no Drácula de 1979, estrelado por Frank Langella. E, finalmente, essa história de “amor de vidas passadas” já rendeu o que tinha que render. É um dos artifícios mais manjados e preguiçosos e devia ser aposentado até o fim dos dias. Trata-se do “Nissin Miojo romântico”. Coisa de roteirista que quer colocar um romance na história, mas não tem tempo, paciência ou habilidade para desenvolver o relacionamento entre os personagens de forma convincente. O filme em análise é o exemplo típico: Mina, até então, estava comprometida com Harker, aparentemente apaixonada pelo noivo e sem nenhum outro interesse. De repente, surge um estrangeiro esquisito que passa a segui-la e assediá-la insistentemente, até convencer a moça a ir ao cinema, deslumbrando-se com essa maravilhosa inovação científica (Meta-linguagem rasteira, a muleta do cineasta pretensioso!), doma um lobo fugido do zoológico (essa habilidade, tenho que admitir, é muito fodona, mas tenho minhas dúvidas sobre seu potencial afrodisíaco), leva a moça para jantar e solta umas abobrinhas mela-cueca sobre a beleza de sua terra natal e sobre a “princesa que foi roubada de seu antigo príncipe”, serve absinto à jovem (a versão vitoriana do rohypinol) e pronto: Mina começa a ter visões sobre sua “vida passada” e aflora o amor.


Não vou nem perder meu tempo discorrendo sobres as imbecilidades teológicas do filme. No prólogo, Vlad era cristão e se rebelou contra o Deus cristão; não sei, entretanto, o que cristianismo tem a ver com reencarnação, mas tenho a impressão de que passei mais tempo pensando nisso do que Hart ou Coppola.


Tudo é lindo e maravilhoso, até que Harker consegue fugir do castelo, cair num rio e, sabe-se lá como, chegar a um convento (admito que isso não é culpa do roteiro; o livro também nunca deixa muito claro como ocorre essa “fuga”). Não sei que raios levam o homem a trocar Monica Bellucci e duas vampiras taradas, pela possibilidade de se reencontrar com Winona Ryder, mas cada um sabe de si. Pelo menos respeito a fidelidade do personagem, que demonstra firmeza de caráter em face à tentação. Pena que noiva do mancebo não compartilha de tamanha integridade. Será que ele teria fugido se soubesse que Mina se desmanchou diante do primeiro mané de cartola que apareceu? Jamais saberemos. Enfim, Mina recebe uma carta das freiras, resolve reencontrar o noivo e manda uma carta para “Vlad” informando, para ser sucinto, que o bem-bom acabou. O conde dá um faniquito hilário, digno de uma menina gótica de treze anos que levou um chega-pra-lá do primeiro namorado.

Frustrado, o vampiro deixa de frescura e vai para a casa de Lucy, desce a pancada em Morris e Holmwood (Vigilância de qualidade é isso aí!), profere um discurso pretensioso de fazer inveja a Zandor Vorkov, vira um lobo (Por que? Porque fica estiloso!), finalmente mordendo e dando cabo da moça. Tudo isso é editado de forma intercalada com cenas do casamento de Mina e Harker (sim, eles decidiram se casar no convento mesmo) numa sequência que mostra que o homem que dirigiu “O Poderoso Chefão” também pode, sim, fazer cinema com toda a perícia de um videoclipeiro. E, Drácula: boa tática. Se há uma maneira eficaz de reconquistar uma mulher é matando brutalmente a melhor amiga dela.


Cabe agora ao Van Helsing mostrar aos seus companheiros que o pesadelo não acabou: após o velório, ele os leva à cripta onde Lucy foi sepultada, à noite, revelando que o caixão da finada está vazio. Enquanto nossos heróis estão ponderando esse mistério, a pseudo-morta aparece, carregando uma criancinha que está prestes a vitimar. A princípio, os pretendentes da moça estão perplexos, acreditando que houve algum engano e ela foi enterrada viva. Mas tal ilusão não perdura. Logo, fica evidente que a Lucy que está agora diante deles não é a mesma. Ela está... com caninos afiados e uma pesada maquiagem branca. A diferença é basicamente essa. No livro, a pura e inocente Lucy, após vampirar, se comporta de forma que, para os padrões vitorianos, era extremamente lasciva e vulgar, deixando clara a mudança de personalidade. Aqui, Lucy já aputalhada em vida, então a única diferença são os dentes e a maquiagem. Ela tenta enfeitiçar Holmwood, mas Van Helsing, intrépido, lasca um crucifixo na cara da criatura demoníaca, que, acuada, retorna para seu caixão, não sem antes dar uma violenta e inexplicável golfada de sangue em seus algozes (“homenagem” a “O Exorcista”, segundo o diretor). Resolvido o conflito, os heróis fincam estaca no coração da moça e cortam sua cabeça. Justiça seja feita, a cena da execução é bem executada e a transição da cabeça decepada para um suculento filé mal passado que Jonathan Harker está jantando é o único momento de humor negro genuinamente eficiente.


E aqui, com a volta de Jonathan e Mina e a união destes com Van Helsing e seus três companheiros, é que o filme realmente se embanana. Porque, embora o roteiro opte por retratar Drácula como um anti-herói romântico, torturado pela memória do amor perdido, Hart parece também ter gostado da idéia da dos caçadores de vampiros se reunindo para combater o Maligno. E o filme fica, assim, em cima do muro, sem saber que partido tomar. Aliás, aproveitando a oportunidade, é irônico que Coppola se gabe de ter feito a única adaptação que “mantém todos os personagens” – tal “fidelidade” torna evidente a sabedoria de adaptações anteriores, que geralmente condensam Seward, Morris e Holmwood em um ou dois personagens: a presença dos três é completamente desnecessária, pois nenhum deles ultrapassa a densidade de um estereótipo – como eu disse antes: médico geek, cowboy texano e aristocrata pedante. No livro, embora a caracterização de Stoker seja fraquíssima, é fácil sentir uma certa empatia pelos três personagens, que, embora superficialmente, são retratados, pelo menos, como sujeitos decentes e amigos leais. Aqui, os personagens causam tão pouca impressão que só servem para arrastar a duração do filme.


Ah, e eu esqueci de mencionar que Jonathan e Mina, ao voltarem para Londres, se deparam, por acaso, com Drácula na rua. Mina não vê seu “príncipe”, mas Jonathan, de uma carruagem, vê o conde e dá um piripaque, reconhecendo a criatura da noite e observando que ele “ficou mais jovem!” O que é estranho, pois, ao contrário do que ocorre no livro, não há qualquer semelhança física entre o Drácula velho e o Drácula jovem.


Foi só uma tentativa de ser fiel ao texto que, aqui, não funciona, porque no livro, Drácula realmente rejuvenesce à medida que vai consumindo mais sangue, mas não (como ocorre no filme de Coppola) muda radicalmente de aparência. O “Conde Drácula” de Jess Franco, embora seja uma tosqueira geral, pelo menos, nesse aspecto, acompanhou o livro com fidelidade.


Enfim, voltando aos intrépidos caçadores de vampiros: combinando suas histórias, eles acabam descobrindo a toca do monstro: a “Abadia de Carfax”, próxima ao manicômio de Seward. Ao som de uma bombástica trilha sonora, para lá vão os heróis, consagrar com hóstia e água benta os caixões (ou melhor, caixotes) que Drácula trouxe de sua terra natal para impedir o vampiro de usá-los como abrigo. Mina fica hospedada no sanatório de Seward, onde conhece Renfield que, inexplicavelmente, sente-se compelido a advertir a moça que vá embora e se salve e tenta convencer Seward a tirá-lo de lá (o filme não deixa claro, mas a presença de Renfield no asilo permite a entrada de Drácula no prédio). E eu sei que não mencionei o personagem de Renfield antes, mas é porque a presença dele no filme, apesar da boa interpretação de Waits, é, fora essa cena, completamente desnecessária: ele se limita a dar faniquitos, fazer discursos desconexos sobre o “mestre” e comer insetos. As advertências do lunático, entretanto, são ignoradas, e Mina fica no manicômio enquanto os cinco mosqueteiros vão cumprir sua missão.


E Drácula, aproveitando o ensejo, resolve adentrar o quarto onde Mina dorme, reiterar seu amor e revelar a sua verdadeira identidade à moça, em um momento totalmente “emo” (“Não há vida neste corpo. Eu sou o monstro que homens que respiram destruiriam. Eu sou Drácula. Ai de mim, condenado a uma eterna existência de trevas e solidão! Que eu, diga-se de passagem, escolhi voluntariamente, porque minha esposa se matou e eu fiquei puto com Deus.”). E Mina, após um rápido momento de freakout (“Seu puto! Você matou minha melhor amiga só por causa de uma dor-de-cotovelo!”), acaba ouvindo seu coração, se rendendo ao amor e declarando seu desejo de ficar eternamente ao lado de seu amado. E segue-se uma ridícula cena romântica, em que Drácula faz charme, alegando não querer levar a mocinha para uma “existência de horror” (Deixe de conversa! Por que você ficou atrás dela esse tempo todo, então? Só pra tirar uma casquinha?). E quer saber de uma coisa: que se foda quem escreveu esse negócio estapafúrdio. Essa “crise de consciência” de Drácula é totalmente impossível de engolir. Primeiro, o cara passa parte do filme atormentando Harker no castelo, servindo alegremente um fofo bebezinho de jantar pra suas concubinas vampiras (com direito a gargalhada de Dr. Evil) e matando Lucy só porque levou um fora da namorada e, de repente, ele se torna esse paradigma sensibilidade e consciência pesada? Que indecisão da porra é essa? Roteirista que quer ser fiel ao livro e “subverter” o material de origem ao mesmo tempo. E por que essa incoerência? Porque a única chance de o filme poder alegar “originalidade” é seguindo todos os principais pontos do livro; afinal, se ele simplesmente se limitasse a retratar Drácula como um anti-herói romântico e seguisse essa idéia com um mínimo de coerência, seria, em essência, um versão recauchutada e mais cara do Drácula de John Badham, que pelo menos segue a premissa de que “Drácula não é só um monstro sanguinário; ele também quer amor” com um mínimo de consistência. E sem fazer, em momento algum, o vampiro parecer um mané indeciso e chorão. E, de lambuja, ainda consegue ser assustador (se não acredita, veja a cena em que Van Helsing e Seward encontram a Lucy vampira naquele filme).


Após muita lenga-lenga, Drácula acaba mordendo Mina e fazendo-a beber seu sangue, em um momento que, sem dúvida, o cineasta esperava ser romântico e comovente (a trilha sonora deixa óbvia essa intenção), mas que, na verdade, é constrangedor.

Justamente no momento do oba-oba, Van Helsing e sua turma aparecem, Drácula se emputece e vira um morcego gigante totalmente fodão, faz um crucifixo pegar fogo e se transforma numa porrada de ratos, fugindo do recinto. O mais cômico na situação toda é que, quando o vampiro vira um monstro-morcego, o ninguém parece se assustar. Quando ele vira uma pluralidade de ratos, contudo, a reação deles é hilária: todos recuam, fazem expressão de “eca” e só faltam sair dando pulinhos e gritando “Ui! Socorro! Que nojento!”. E Mina, provavelmente para enrolar os bestas, começa a chorar e exclamar que está “Impura! Impura!”. Mais uma tentativa de ser fiel ao livro que não fez sentido no contexto. A primeira vez que li o texto, quando eu tinha uns dez anos de idade, achei a cena da “troca de sangue” profundamente incômoda e perturbadora, mas não consegui identificar por que. Mais tarde, acabei percebendo o motivo: a cena, no livro de Stoker, é o equivalente vampírico a um estupro, através do qual o estuprador, dolosamente, transmite uma doença à vitima. A atitude de Drácula, ao atacar Mina é, essencialmente, “Ah, então é você quem está ajudando esses porras a me caçar? Pois olha só o que eu vou fazer com a putinha deles. E não resista que eu sei que você vai gostar”. Daí toda a reação histérica da personagem. Aqui, a reação de Mina é completamente sem nexo: a mordida e a troca de sangue foi completamente consensual. Aliás, ela insistiu para que Drácula o fizesse. Então só restam três interpretações: ou ela está só fazendo uma encenação para enganar os bestas, ou Mina é uma idiota cabeça de vento que não sabe o que quer, ou James Hart e Francis Coppola não sabiam o que queriam fazer com a história.


Mais uma coisa: o ataque à Mina, no livro, traz tensão à história. Até então, os heróis estavam muito seguros de si, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, conseguiriam localizar e destruir o conde. Com Mina mordida, tudo se torna mais urgente, pois eles têm que localizá-lo antes que a transformação da moça se complete e ela se torna uma vampira. Aqui... francamente, fica meio difícil decidir que atitude o espectador deve adotar: torcer para os caçadores de vampiros encontrem Drácula ou torcer para que o romance da mocinha e do vampiro sofredor se concretize? Francamente, eu acabo não me importando com o resultado. Mina foi mordida voluntariamente e quer “se unir” ao “seu príncipe”. Apesar de todas as tentativas de despertar a solidariedade do espectador por Drácula, este continua sendo um monstro que mata criancinhas e a melhor amiga de sua “amada” por causa de uma dor-de-cotovelo. Por outro lado, os caçadores de vampiros são, na melhor das hipóteses, palhaços (Van Helsing, Morris), manés (Harker, corno manso, e Seward, nerd do século XIX) ou simplesmente antipáticos (Holmwood). Mais uma vez, é risível a “inovação” de colocar todos os personagens do livro no filme. No livro, por mais fraca que seja a caracterização, o leitor acaba criando uma certa empatia por eles – todos são, basicamente, sujeitos decentes. No filme, eles são estereótipos sem qualquer densidade. Minha conclusão: que se danem. Tanto faz como a história vai terminar. Não me importa mais.


Prosseguindo, Van Helsing hipnotiza Mina para, através do “vínculo psíquico” que se formou entre ela e o vampiro após a mordida, descobrir o paradeiro de Drácula. É interessante observar, aqui, como a tentativa de “modernizar” as personagens femininas saiu totalmente pela culatra. Tudo bem, no livro, Lucy é só uma donzela indefesa, ansiosa para encontrar um cônjuge para protegê-la. Mina, contudo, apesar de todas as baboseiras machistas que Stoker utiliza para articular tal fato (coisas como “Madame Mina tem o coração de uma mulher aliado ao cérebro de um homem”) é, claramente, a personagem mais inteligente do grupo. Como todo mundo já deve saber, a narrativa do livro de Stoker é feita através da vários diários e cartas dos personagens. É Mina quem tem a idéia de reunir os diários de todos os personagens, datilografá-los e organizá-los cronologicamente, a fim de identificar os padrões de comportamento do vampiro. É ela quem, após ser mordida, decide que sua participação nas reuniões do “conselho de guerra” é perigosa, pois Drácula pode ler seus pensamentos. E é ela – não Van Helsing – quem sugere que a hipnose pode ser um meio eficaz de descobrir os planos do conde. É, enfim, uma personagem feminina surpreendentemente competente para os padrões da época, mormente quando se considera que o livro foi escrito por um homem bastante conservador. Ela contribui ativamente para o desenrolar da trama, ao invés de ser apenas uma mocinha indefesa. Não à toa, quando Alan Moore escreveu “A Liga Extraordinária”, ele colocou Mina Harker como a líder do grupo: a capacidade de organização e calculismo da personagem a tornam ideal para tal função. Coppola e Hart, entretanto, não conseguiram enxergar nada disso. Eles partiram, imediatamente da premissa que o livro era antiquado e baseado em uma visão de mundo ultrapassada. Tentaram “modernizar” a história e torná-la “psicologicamente complexa” transformando Lucy numa ninfomaníaca e inventando esse “romance” entre Mina e o vampiro. O que eles conseguiram, entretanto, foi ignorar tudo de interessante na personagem e a reduziram ao “interesse romântico” da história. Ironicamente, a Mina do filme é uma personagem cabeça de vento, frágil e indecisa, muita mais parecida com a mocinha romântica típica de um livro de José Alencar do que a personagem do livro de Stoker.


Divagações à parte, Van Helsing hipnotiza Mina, descobre que Drácula está voltando para a Transilvânia e lá vão eles Europa adentro, em perseguição ao vilão. O Professor e Mina chegam ao castelo com Mina antes dos demais caçadores de vampiros e resolvem acampar enquanto os outros não chegam. Mina começa a vampirar, baixa a pomba-gira e tentar seduzir o velho (o negócio é ridículo; só faltava “Let’s Get it On” de Marvin Gaye na trilha sonora), que, após um momento de fraqueza (Massa! Tudo que eu precisava era ver Anthony Hopkins dando uns malhos em Winona Ryder. E é interessante ver como o “alicerce moral” dos “heróis” da história só precisa ver um decote pra dar uns pegas na mocinha), resiste à tentação (ou melhor, toma um susto quando Mina tenta atacá-lo e acaba decidindo que o sexy-time talvez não seja uma idéia tão interessante). Ambos são atacados pelas “noivas de Drácula”, mas Van Helsing as repele com um plano engenhoso: traçando um círculo de fogo ao seu redor (no livro, ele traça uma trincheira e a enche de pedaços da hóstia; aqui, as vampiras são mais ou menos como escorpiões; basta um pouco de fogo é tá seguro). Funciona. Pode não fazer sentido, mas fica uma imagem estilosa, e é isso que importa.


No dia seguinte, Van Helsing vai ao castelo, dá cabo das três vampiras e joga as cabeças num precipício, gritando, melodramaticamente, “DRACUL! DRACUL! DRACUL!” Sinto muito, mas Vlad DRACUL era o pai de Vlad DRÁCULA. Você se embananou aí, colega.


Perto do anoitecer, um bando de ciganos chegam carregando o caixão de Drácula, com Holmwood, Harker, Seward e Morris no encalço. Balas voam, trilha sonora bombástica ecoa, Drácula evoca uma tempestade, mas não sai de seu caixão pra se defender, porque ainda é dia. A questão é: por que não? O filme deixa bem claro que, “ao contrário da crença popular, os vampiros podem se locomover durante o dia”, o que também acontece no livro. Ocorre que, no livro, em determinados momentos (sabe-se lá por que), embora não diariamente, o vampiro precisa descansar em seu caixão. Nesses momentos, o morto-vivo fica indefeso, em estado de catalepsia, incapaz de esboçar qualquer reação. É o que acontece na versão literária dessa cena. No filme, entretanto, é evidente que Drácula está desperto e lampeiro: ele passa o tempo todo resmungando no caixão, ansioso. Logo, não faz sentido ele esperar o pôr-do-sol para sair e se defender.


Os destemidos aventureiros dão cabo dos ciganos, Morris leva uma facada nas costas, mas consegue abrir o caixote do vampiro, justamente quando o sol se põe. Drácula velho sai do caixão, numa explosão de madeira pra todo lado, trajando uma indumentária ainda mais espalhafatosa que o quimono vermelho; Morris corta sua garganta, leva uma porrada que o faz voar longe e Harker mete um facão no peito do vampiro. Quando ele está prestes a dar o golpe de misericórdia, Mina aparece, ameaçando-o com uma espingarda: “Quando chegar minha hora, você fará o mesmo comigo?”, indaga a mocinha. “Provavelmente”, pensa o corno manso, mas, certamente refletindo sobre a prudência de tal resposta diante de uma arma carregada, responde que “não”.

Mina arrasta o Drácula moribundo pra um recinto do castelo. Os caçadores de vampiros tentam detê-la, mas Harker os impede, declamando “Não! Nosso trabalho aqui está encerrado. O dela apenas começou!” Que porra ele quer dizer com isso? Mais um momento pretensioso e sem sentido, através do qual o roteirista tenta contornar, com picaretagem, o inevitável (numa versão plausível, Mina ia ser atacada pelos caçadores de vampiros, que terminariam o serviço com Drácula e procederiam a cobrir a mocinha de pancadas). E, enquanto Morris morre, Van Helsing filosofa: “Nós nos tornamos os loucos de Deus.” Puta merda... quanta baboseira afetada e sem sentido.


O recinto para aonde Mina carregou Drácula, vejam vocês, é a capela onde Vlad, no prólogo, renunciou a Deus a se tornou um vampiro (Genial! É como se tudo fosse parte de um ciclo traçado pelo destino!). A mocinha chora e Drácula lamenta “Onde está seu Deus? Ele me abandonou?” Mais uma vez, fricotagem emo que não faz o menor sentido. Se a memória não me falha, foi o contrário: Drácula é que ficou puto e declarou guerra a Deus. Francamente, o vampiro está se comportando como um adolescente que foge de casa e depois fica se lamuriando porque seus pais não estão tentando encontrá-lo. “Meu amor”, choraminga a jovem, beijando seu amado imortal. Subitamente, todas as velas da capela se acendem, uma luz celestial brilha sobre o casal, o buraco na cruz em que Drácula tinha fincado a espada, no início do filme, se fecha, e o vampiro passa por uma regeneração, adquirindo uma aparência jovem e uma expressão de paz celestial. “E ali, na presença de Deus, percebi como meu amor poderia nos libertar dos poderes das trevas”. Como, exatamente? Na base do sofisma? “Nosso amor é mais forte que a morte!”, continua a moça, com a profundidade que só uma fã de “Crepúsculo” pode ter. “Dê-me paz!”, pede, finalmente, o trágico vampiro, e Mina, após alguma hesitação, saca o facão fincado no peito de seu amado e decepa sua cabeça, extinguindo, para sempre, a existência do sofrido morto-vivo.


E eis que nossa heroína olha para o teto, e vê um painel mostrando Vlad e Elisabetha juntos. Isso é lindo! Significa que eles, finalmente, estão reunidos no além. Tipo “O Morro dos Ventos Uivantes”. Só que não estão. Mina é a reencarnação de Elisabetha e continua viva. Pela lógica, Drácula vai ter que ficar coçando o saco por mais algumas décadas até reencontrar sua amada.


Pois é, trata-se de um filme idiota, inconsistente e pretensioso. É difícil acreditar que esse pastel de excremento foi feito pelo mesmo homem que dirigiu “O Poderoso Chefão I e II” e “Apocalypse Now”. O roteiro toma a decisão imbecil de tentar ser, simultaneamente, fiel ao livro e retratar Drácula como um anti-herói trágico, o que é impossível de se fazer sem sacrificar a coerência. É mais ou menos como alguém fazer uma biografia extremamente fidedigna de Hitler, só que ignorando o racismo monstruoso do indivíduo. Ou fazer uma adaptação cinematográfica da Bíblia, mudando apenas o fato de que Satanás não é o vilão da história, apenas um sofredor injustiçado. O resultado é um filme em que não funciona nem como romance, nem como história de horror; onde, aparentemente, ninguém está errado, mas cujos autores, obviamente, esperam que o espectador tome partido de alguém – só que nem eles mesmos parecem ter certeza de quem. E como nenhum dos personagens é particularmente empolgante, o efeito provocado é o inverso: francamente, não dá para sentir empatia por nenhum dos personagens. A única virtude do filme é o visual (além de Monica Bellucci e Sadies Frost seminuas), mas, se só isso for necessário para a excelência de um filme, Zack Snyder é, de fato, o “visionário” anunciado pelos trailers de Watchmen.


Não veja esse filme e, se já viu e gostou, reveja e perceba como se enganou. Se você quer um filme que retrate Drácula como um “anti-herói romântico”, veja a versão de John Badham, de 1979, que o faz com coerência e sem fazer o vampiro parecer um mané chorão. Se quer ver uma “reinvenção” realmente singular da história e visualmente arrebatadora, veja o “Nosferatu” de Herzog. Se que uma versão muito sinistra da história, com visual igualmente ímpar, veja o “Nosferatu” de Murnau. Se quer a adaptação mais fiel do livro, veja “Count Dracula” (1977) da BBC, dirigido por Phillip Saville e estrelado por Louis Jourdan. E, se você quiser ver o Drácula mais fodão do cinema, veja “Vampiro da Noite” (1957), de Terence Fisher.


E Coppola devia se dedicar a sua vinícola em tempo integral.